(O Globo, 26/11/2011, caderno especial, p.2)
Bombardeados por esse tipo de pensamento – que criminaliza a pobreza, que vê os miseráveis culpados por sua própria miséria – e por imagens espetaculares de violência que geram pânico na classe média, é compreensível que muitas pessoas, incluindo parte dos mais pobres,apóiem e respaldem as ações de repressão. A classe média em especial não esconde sua alegria ao ver tanques de guerra se dirigindo aos morros.
Diante do desconforto de ouvir diariamente, em diversos ambientes conversas do tipo “tem mais que matar mesmo esses bandidos”, escrevo essas linhas propondo questões não presentes no senso comum. Não tenho nenhuma pretensão de explicar ou apontar o caminho para solucionar o problema da violência do Rio de Janeiro.
Vale discutir se o “bang bang” vai mesmo deixar a cidade “pacificada”. Se a repressão policial resolvesse a questão, viveríamos no melhor dos mundos. A polícia do Rio de Janeiro é a que mais mata no mundo. Uso dados de um artigo de Arbex Jr, da Caros Amigos: a taxa homicídios/ano do Rio de Janeiro é de 2.273. O estado se aproxima de todo o Irã (um país inteiro!). Aqui, morrem 34 vezes mais que a Irlanda, 22 vezes mais que o Líbano, 11 vezes mais que Israel, 54 vezes mais que os Emirados Árabes, 5 vezes mais que a Síria... Citei países que tem conflitos históricos, como Israel, ou países de “terceiro mundo”. Não comparei com uma Noruega (cuja taxa de homicídios é 60 vezes menor). E repito: comparei o estado do Rio de Janeiro com países inteiros!!! Nossa polícia mata muito (e também é uma das polícias que mais morre no mundo)!!! Portanto, mortes, coerção e “caverões” não estão faltando. Poderíamos citar inúmeros exemplos nesse sentido. Recordo de mais dois: os documentaristas de “Falcão – meninos do tráfico” entrevistaram oito menores ligados ao “movimento” quando o filme foi lançado, apenas um ainda estava vivo... Já em “Notícias de uma guerra particular”, policiais do BOPE admitem que matavam toda noite um “traficante” da Mineira e não adiantava nada...
É preciso lembrar sempre: quando ouvimos falar de mortes nas favelas, muitas vezes pessoas que supostamente morreram em tiroteios na verdade foram executadas. Isso foi comprovado nas incursões no Complexo do Alemão, em 2007, no contexto da “pacificação” para os Jogos Panamericanos. E muitos desses executados não tinham ligação com o tráfico. Convido vocês a conhecer a luta das mulheres da “Rede Contra a Violência”, de mães que perderam seus filhos pela repressão policial. Três dias atrás, conheci Márcia Jacintho que, com muita coragem, conseguiu provar que seu filho, sem vínculos com o crime, fora executado por policiais.
Na operação desta quarta-feira (24/11/2010) na Vila Cruzeiro, tão celebrada pela mídia, vale destacar o perfil de alguns dos mortos, segundo o registro de uma jornalista do Estado de São Paulo: vítimas - uma adolescente de 14 anos, atingida com uniforme escolar quando voltava para casa; um senhor de 60 anos, uma mulher de 43 anos e um homem de 29 anos que chegou morto ao hospital com claros sinais de execução. Feridos - 11 pessoas, entre elas outra estudante uniformizada, dois idosos de 68 e 81 anos, três mulheres entre 22 e 28 anos, dois homens de 40 anos, um cabo da PM e apenas dois homens entre 26 e 32 anos. O padrão de matar pobres, não raro sem ligações com tráfico, se mantém.
Esse tópico de cima nos leva a refletir sobre outro. A população das favelas está apoiando a repressão? A televisão nos diz isso toda hora! E entrevista policiais que dizem isso todo instante! Mas e as entrevistas com moradores? Nada! Bom, se você quer furar esse cerco midiático, acesse http://www.youtube.com/watch?v=Z3vteAmy5qs. Aqui, você escutará uma entrevista feita por uma rádio comunitária do Morro Santa Marta com um morador do Complexo do Alemão. Não estranhe as interrupções pelas várias rajadas de tiros.... Adianto que você não ouvirá um entusiasta das ações do BOPE...
A repressão violenta se concentra sobre os mais pobres. Como declarou o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ), são “homens de preto” que matam pobres, geralmente “pretos”. E vale lembrar: o próprio policial também é oriundo de famílias mais pobres. Um policial no Rio de Janeiro ganha muito pouco (tem o segundo pior salário do Brasil).
Um dos simplismos das versões midiáticas tem sido colocar “polícia” versus “bandidos”. Ora, por várias circunstâncias, como lembra Luiz Carlos Soares, não há nenhuma modalidade importante de ação criminal no Rio de que segmentos policiais corruptos estejam ausentes. Não vi isso destacado pela imprensa, que nos mostra os policiais como mocinhos super-heróis que irão nos salvar... Muito menos há reflexão para as causas dessa corrupção policial.
Já que falamos da pobreza dos noticiários, que apenas querem nos levar a ter medo e apoiar a ação da polícia e do Exército, vale destacar: por que esses “arrastões” e incêndios de veículos aconteceram? Ninguém sério pode acreditar que foi uma resposta às UPPs ou que o objetivo era causar danos políticos ao governador Cabral. Se fosse este último caso, por que esperar o fim das eleições para fazer as ações? Supondo que os varejistas do tráfico não sejam tão estúpidos, por que fizeram essas ações? Para chamar a repressão contra si e causar a própria morte??? Não tenho resposta para essas perguntas. Mas ressalto a necessidade de se ter senso crítico à versão dada pela grande mídia e pelas autoridades. O fato é: não sabemos o porquê disso tudo...
Acima, falei em varejistas do tráfico. Sim, pois os verdadeiros traficantes de armas e de drogas não moram na Vila Cruzeiro... O tráfico internacional de drogas movimenta cerca de 1 trilhão de dólares. Nas imagens repetidas pela TV Globo, onde homens corriam em uma estrada de terra para chegar em outro morro, víamos pessoas sem camisa... Com certeza, não são esses que mexem com os milhões e bilhões de dólares. E usam armas russas e israelenses: duvido muito que eles falem russo e hebraico para comprar esses armamentos... Logo: essas pessoas não são nem de longe as principais articuladoras do tráfico de drogas! Como se eu fosse ao McDonald’s e considerasse o atendente que me dá os big macs como “o” responsável pela lanchonete... Ora, “o” responsável pelo McDonald’s sequer está no local... O mesmo para as favelas: ali só se encontram varejistas, não os verdadeiros chefões do tráfico... Estes últimos moram de frente para a praia, em belos edifícios...
Em tempo: por que tanta hipocrisia com relação à maconha? Por que não legalizá-la se tantos a usam? Ontem (27/11), fui ao show na Lapa da Céu e do Otto. A minha volta, vários jovens fumando maconha. A verdade é que em todos os círculos de amizade, conheço pessoas que fumam ou já fumaram regularmente, incluindo: amigos da rua, da escola, da faculdade, do trabalho e da família! Por que não permitir eles plantarem em casa? Ora, porque assim, tem-se menos dinheiro... Parece que não se quer exatamente o fim do tráfico de drogas...
Por fim: de onde surgem esses “perigosos bandidos”? Isso a mídia não explica, né? Eles moram, por acaso, nas favelas e nas regiões mais pobres? Acredito ser fundamental considerar as oportunidades de cada pessoa e a classe social a qual pertencem. Eu estudei em uma escola de classe média alta do RJ. Meus amigos viraram médicos, economistas, advogados, professores... Ninguém ali cogitou virar “fogueteiro” ou chefe de boca de fumo... É preciso considerar o abismo que existe entre ricos e pobres para entender a violência. Resolver esse abismo – que envolve transformações estruturais em nossa sociedade – é a verdadeira questão. Repressão policial não é a solução. Concordo com MC Leonardo: ao invés de UPPs, que as favelas sejam invadidas com a Universidade Federal da Rocinha, com a Faculdade Estadual do Borel...
Em tempo: os verdadeiros bandidos não frequentam as seções policiais dos jornais. Mas se desejar ver os reais roubos, verifique o quanto os banqueiros receberam de “ajuda financeira” dos leais governos de vários países do mundo, a partir da crise econômica de 2008: cifras em torno de trilhões... Veja o filme de Michael Moore, “Capitalismo, uma história de amor”, que conta um pouco disto. Então, prefiro mudar a frase do governador: “o útero das classes dominantes é uma fábrica de bandidos”. Ou como lembra Lênin: “não há diferenças entre ladrões de banco e donos de banco, ambos são igualmente ladrões.”
João Braga Arêas é Doutorando de história da UFF e Professor do Colégio Pedro II