Sua linha de argumentação se baseia no terceiro parágrafo do artigo 226 do capítulo VII da Constituição Federal que rege sobre a família, onde lê-se que “Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Baseando-se nisso questionou a constitucionalidade do parecer dado pelo Ministro Ayres Britto, favorável à união, alegando haver uma lacuna constitucional sobre o assunto uma vez que não se menciona na lei uniões estáveis de mesmo sexo. Sugeriu, então, que diante de tal lacuna seria mais apropriado levar o debate ao Congresso Nacional do que resolvê-lo no âmbito do Supremo pois não se deve confundir uma lacuna constitucional com não encontrar o que se quer ouvir na Constituição Federal.
Em resposta Ayres Britto respondeu: “O sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional em contrário, não se expressa como fator de desigualação jurídica. A Constituição Federal opera com intencional Silêncio. Mas a ausência de lei não é ausência do direito, porque o direito é maior que a lei”.
Mesmo assim, Cysneros achou ser necessário lembrar à Corte que sua cliente condena as uniões e os relacionamentos homossexuais chegando a insinuar que este é o preceito encontrado na Bíblia.
"O catecismo da Igreja também vê nesse tipo de comportamento algo que deve ser combatido, que não deve ser admitido por aqueles que crêem na fé católica ou cristã em geral. Como enxergar na expressão “o homem e a mulher” algo que não seja alguém do sexo masculino e alguém do sexo feminino?”
É simplesmente vergonhoso e inaceitável que um advogado traga à frente do Supremo um argumento declaradamente baseado no catecismo da Igreja. A linha de argumentação escolhida por Cysneros fere de maneira substantiva o princípio republicano de separação entre o Estado e a Igreja que caracteriza o Estado moderno. Mesmo que houvesse tal lacuna jurídica, o que foi contestado, aparentemente, não só por Ayres Britto como por todos os Ministros do Supremo, dada a unânimidade na votação, o catecismo da Igreja nunca poderia ser usado como base de fundamentação e jurisprudência jurídica em qualquer Corte de Justiça do mundo porque, certamente, feriria princípios constitucionais de maior relevância como os expressos pelo caput do artigo 5 sobre direitos e garantias fundamentais e pelos incisos I e III do artigo 19 que delineiam os contornos laicos do Estado Brasileiro.
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes
Título II Dos Direitos e garantias Fundamentais
Capítulo I Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos
Art. 5º
Título II Dos Direitos e garantias Fundamentais
Capítulo I Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos
Art. 5º
É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.
Titulo III Da Organização do Estado
Capitulo I Da Organização Político Administrativa
Artigo 19
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.
Titulo III Da Organização do Estado
Capitulo I Da Organização Político Administrativa
Artigo 19
Tendo-se em vista esses preceitos constitucionais, o argumento da CNBB teria que provar que a defesa da distinção entre casais homossexuais e heterossexuais no que tange aos seus direitos civis estava sendo feita em nome do interesse público para que não fosse considerada inconstitucional. Contudo, mesmo que seguissem por esse caminho, esbarrariam no inciso III que proíbe ao Estado criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.
Ainda assim, Cysneros insiste e argumenta que se deve interpretar a lei não à luz do Direito mas à luz da intenção do legislador original e da acepção estritamente literal do texto escrito como se a peça de legislação em questão não fizesse parte de um ordenamento jurídico maior.
”Aqui, o que se instala é discutir o que quis dizer o legislador constituinte originário. Acredito que ele já disse tudo. A Constituição da República falou em homem e mulher e fala também em ascendente e descendente."
Concordo com Ayres Britto que o Direito é um Silêncio que diz mais que mil palavras. E conforme vemos pelo argumento da CNBB, a Palavra, não raro, esconde o que o Silêncio tem por destino revelar. Os legisladores originais da Constituição americana não consideravam os negros nem as mulheres como cidadãos plenos quando a escreveram. Os negros só eram lembrados quando eram usados para se contabilizar quanto um Estado deveria receber do orçamento da União ou para definir quantas cadeiras no Congresso seriam atribuídas aos Estados escravistas. A inclusão dos negros na contagem de pessoas livres para esses fins contribuiu para o crescimento do tráfico de escravos, do poder político dos Estados do Sul escravista e para a intensificação do debate pelo fim da escravidão, conflito que culminou com a Guerra Civil Americana.
Em 1857, uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, que ficou conhecida como Dred Scott v Stanford, tornou jurisprudência o que até então existia como silêncio ao declarar que os negros trazidos como escravos para os Estados Unidos assim como seus descendentes, independentemente de serem ou não escravos, não se beneficiariam dos privilégios e benefícios da Constituição americana por não poderem ser considerados cidadãos americanos. Com o fim da guerra civil americana e a vitória do Norte contra o Sul escravista publicou-se a décima quarta emenda à Constituição americana versando sobre direitos de cidadania, que reverteu, em parte, os efeitos de Dred Scott v Stanford mas que complicou muito a luta das mulheres pelo direito de votar.
Apesar da décima quarta emenda declarar em seu primeiro parágrafo que todos as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos e sujeitas à sua jurisdição seriam cidadãos plenos dos Estados Unidos e do Estado onde mantivessem residência e que nenhum Estado poderia criar leis ou fazer cumprir qualquer lei existente que subtraíssem privilégios e benefícios de seus cidadãos, seu segundo parágrafo estabelecia que, quando o direito de votar em qualquer eleição para presidente, vice presidente, membros do executivo, do legislativo ou do judiciario de qualquer Estado fosse negado a cidadãos americanos HOMENS maiores de 21 anos de qualquer Estado ou fosse, esse direito, suspenso por qualquer motivo, exceto quando da participação em rebeliões ou qualquer outro crime, a base de representação do Estado em questão deveria ser reduzida na proporção que esse número de cidadãos homens estabelecesse em relação aos demais homens maiores de 21 anos daquele estado.
Ou seja, o segundo parágrafo contraria o parágrafo imediatamente anterior pois cria uma lei que tira das mulheres o direito de voto uma vez que a linguagem escolhida prevê que tal direito só poderia ser subtraído de cidadãos homens. A não ser, claro, que, naquela época, as mulheres nascidas nos Estados Unidos não fossem consideradas pessoas.
A partir dessa “lacuna” podia-se facilmente argumentar, como fez Cysneros diante do Supremo, que a intenção original do legislador não concedia o direito de voto às mulheres e que, portanto, seria inconstitucional estendê-lo à elas apesar do parágrafo primeiro desta mesma emenda definir todas as pessoas nascidas e naturalizadas nos Estados Unidos como cidadãos americanos. No que dependesse de pessoas como Cysneros, e de certo havia muitos deles à época, as mulheres e os negros americanos deveriam permanecer para sempre invisíveis aos olhos do Estado até que se redigisse, literalmente, o contrário. Assim como os casais brasileiros compostos por parceiros de mesmo sexo.
Em 1873, Susan B. Anthony fez um discurso contundente abordando a inconstitucionalidade da proibição do voto às mulheres durante o qual argumentava o seguinte:
“A única pergunta pendente agora é: as mulheres são pessoas? E eu acho difícil acreditar que qualquer um de nossos opositores teria a coragem de dizer que não. Ao sermos consideradas pessoas, nos tornamos cidadãs; e nenhum Estado tem o direito de criar leis ou fazer cumprir qualquer lei existente que subtraiam privilégios e imunidades de seus cidadãos. Assim toda a discriminação contra as mulheres na constituição e nas leis desses Estados é, hoje, inconstitucional e inócua, assim como todas aquelas contra negros.”
Tanto a décima quinta (1870) quanto a décima nona (1920) emenda da Constituição americana que garantem a extensão do direito ao voto, respectiveamente, aos negros e às mulheres foram criadas como positivação jurídica discordante da omissão intencional dos legisladores originais que aviltava negros e mulheres à condição marginal de cidadãos de segunda classe e negava-lhes o direito de receber e usufruir dos benefícios e proteções do Estado. Apesar da luta dos negros pelo reconhecimento pleno de seus direitos civis ter aduirido momento máximo apenas durante os anos 60 do século XX sob a liderança de Marthin Luther King e Rosa Park, ambas as emendas representaram um grande amadurecimento da sociedade americana que ousou fazer escolhas à luz do Direito e não à escuridão da palavra escrita e da jurisprudência da época. Ambas engendraram debates que culminaram em um consenso sobre a necessidade dessas emendas como garantia inequívoca de que a Constituição não caísse em contradição consigo mesma e perdesse sua credibilidade. Ambas promoveram um gradual entendimento de que a sociedade americana tinha muito mais a ganhar do que temia perder.
A tese de Cysneros sobre uma suposta lacuna constitucional fundamenta-se na ressurreição desse silêncio lazarento, metástase de penumbra sob a qual a CNBB e seus inquisidores togados, infelizmente, parecem ter buscado abrigo. Esse silêncio nunca esteve fundamentado no Direito conforme nos explica Ayres Britto. O silêncio original do “We the people” foi um silêncio abortado pela ignorância. Silêncio mudo que cega, que amordaça com a palavra que escurece, que nada esclarece, que navega à deriva, à mercê dos ventos das paixões e dos ódios que sopram dos púlpitos e dos altares em nome de Deus — Silêncio em sua essência, Pluralidade Absoluta — que, diante do tanto que se fala e do tão pouco que se escuta, apenas cala. E nesse Silêncio faz-se Voz. Faz-se Palavra com P maiúsculo de Plural. Ilimitado e Imediato. Faz-se luz manifesta como consciência expandida para além de nossos limites. Para além das cruzes, dos credos, dos remedos e dos remédios. Para além da vitória, seus hinos, seus exércitos e toda a sua glória.
E um novo dia desperta tranquilimitadamente mais justo.