Capítulo II – Chá das cinco
Quando chegamos à Praça Santos Dumont o trânsito, que já estava lento, engasgou de vez. Decidi deixar o ônibus e andar até o Baixo Leblon onde mora nosso estimado governador. A Visconde de Albuquerque estava engarrafada nos dois sentidos do canal. Atravessei a Praça Sibelius, onde um sinal luminoso anunciava a interdição da General San Martin devido à manifestação; tirei algumas fotos; e segui, apressado, pela pista da esquerda contra o fluxo do trânsito que vinha do Leblon. As famosas figueiras da rua me protegiam da luz forte dos faróis que se moviam em minha direção bem mais vagarosamente do que eu me movia na direção delas. Já era possível ouvir o som dissonante que nos embalaria noite adentro: o dos helicópteros sobrevoando a área em ebulição.
Chegava à Ataulfo de Paiva para lá de fashionably late. Encontrei-a estranhamente vazia não só por conta das obras do metrô mas também pelo controle de fluxo de tráfego que alguns homens da prefeitura faziam no local por conta da manifestação. Decidi entrar na primeira rua à direita, aquela que acaba na Praça Atahualpa, pois ali já era possível ver um grupo grande se movimentando na General San Martin.
Havia um grupo do Choque estacionado onde a Praça Atahualpa encontra a Delfim Moreira. A multidão passou por eles cantando, gritando, levantando cartazes, desfraldando bandeiras e, como sempre, documentando tudo. Mas não houve provocação de nenhuma das partes. A multidão passou e voltou a se dirigir à rua do Governador.
Pelo que entendi, até aquele momento tudo transcorria de forma bem pacífica, os grupos estavam simplesmente dando a volta nos quarteirões vizinhos ao de Sérgio Cabral pois o acesso ao trecho da Rua Aristides Espíndola, onde mora o governador, havia sido bloqueado pelos policiais do Choque tanto na esquina da praia quanto na esquina da San Martin. Uns trinta e poucos policiais alinhavam-se em cada extremidade daquele trecho da rua para impedir a passagem das pessoas e permitir, apenas, o trânsito de moradores.
Segui com o grupo de volta à rua do governador que fica um pouco depois do posto 12 onde tive uma primeira impressão de que as estrelas poderiam ter-se enganado. Fiquei olhando tudo de longe. Notei alguns rostos familiares de manifestações passadas. A faixa com os dizeres: A Polícia que reprime na Avenida é a mesma que mata na favela, presente na manifestação do dia 11 de Julho em Laranjeiras, também estava lá. A menina com o fantoche de papel machê de Sérgio Cabral e o rapaz que fora alvejado na cara com uma dose pelourinhesca de spray de pimenta em Laranjeiras também estavam presentes. Os estudantes de medicina e os voluntários da OAB. Idem.
Caminhei até onde as grades de contenção estabeleciam os limites da manifestação. Lá, também havia uma estação de bicicletas, dessas do Itaú, quase vazia, o que permitiu que muitos fotógrafos subissem na barra laranja horizontal que serve de estacionamento para as magrelas a fim de conseguir ângulos mais interessantes para suas fotos. A guarda real se mantinha, britanicamente, imóvel por trás das grades.
Mais tarde fiquei sabendo que havia três grandes grupos de manifestantes na área, mas ali onde estava, o perfil das pessoas parecia ter mais cubinhos de açúcar do que o perfil do grupo que se reunira dias atrás em frente ao Copacabana Palace. Meninos de skate e lambreta para lá e para cá, gente bem vestida parecendo ter saído do trabalho ou de uma happy hour, curiosos, estudantes, senhoras e senhores. Idades, classes, cores. Tudo muito misturado, como sempre. As pessoas numa tentativa de aprofundar a compreensão de seu entorno, debatiam as razões e os porquês de tudo aquilo e, não raro, passavam quase uma sensação de constrangimento ao justificarem sua presença ali e deixar bem claro que não devia ser confundida com qualquer traço de ausência de civilidade por parte delas. Pareciam muito preocupadas em explicar todos os motivos que as impediriam de dar àquilo um apoio mais tácito. Conflito compreensível em uma sociedade que aprende diariamente a naturalizar a violência diária imposta aos mais vulneráveis entre nós.
Há algumas semanas atrás estava em São Paulo num ônibus que descia a Consolação em direção a Praça da República quando entrou um homem que fedia tanto que sua presença não podia ser ignorada. O cheiro era repugnante. Um grupo grande saiu do ônibus logo que ele entrou. O trocador abriu as janelas perto dele e mantinha a cabeça para fora a fim de conseguir respirar. Pensei que os loucos e miseráveis, assim como os miseráveis loucos, talvez fedam dessa maneira porque nós insistimos em desenvolver estratégias elaboradas para nos convercermos de que eles não existem, de que não os vemos. E na natureza, quando um sentido falha, um outro compensa a falta.
Foi nessa hora, que, ao meu lado, surgiu um homem de barba grisalha e aparência soturna carregando uma mochila marrom clara nas costas com seu celular na mão. Ele apontava sua câmera para os policias e narrava o texto para as imagens que produzia dizendo coisas do tipo: “Aí estão pais de família, trabalhadores, cansados de ter que enfrentar esses vagabundos quase que diariamente…”.
Apesar de não discordar da abordagem dele em documentar humanidade em certos policiais, mesmo porque foi coisa documentável nas manifestações das quais participei como observador até agora, confesso que a situação me causou um certo disconforto. O homem terminou seu trabalho e partiu. Pensei em fotografá-lo, mas desisti. Saí de perto das grades de contenção e observei ele por um tempo. Ele seguiu em direção à Praça Atahualpa e sumiu na distância por conta dos meus graus de miopia.
Quando voltei para onde estava, não tardou para que avistasse o grupo de ninjas anarquistas. Não. Esses não são os meninos do Mídia Ninja que fizeram um trabalho excelente de cobertura. É um grupo que carregava cartazes e placas com o símbolo da anarquia. Estavam, em sua grande maioria, vestidos todos de preto. Uns encapuzados. Outros, não. Ás vezes, também enrolavam camisetas ao redor da cabeça deixando apenas os olhos à descoberto. Dress-code que vem ganhando muitos adeptos a cada manifestação. Não se sabe, ao certo, se fazem isso para se protegerem dos gases e temperos lançados contra eles ou se para dificultar sua identificação. Seja como for, é bom que se diga também que a estratégia que tem por objetivo dificultar a identificação do indivíduo também é muito frequentemente usada pelos membros do Choque.
Um rapaz ficava de skate para lá e para cá gritando: Rainha Guilhermina! Rainha Guilhermina! Ele tentava fazer com que as pessoas reunidas em frente à rua bloqueada saíssem dali e fossem se juntar aos outros grupos que circulavam pelo bairro. Resolvi aceitar o convite. Deixei o Rei-Sol se pôr e fui fumar um charuto com a Rainha holandesa.
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