Capítulo IV – Na roda de fogo com o escorpião de prata
No céu, a Lua, quase pela metade, parecia não querer testemunhar o que estava prestes a acontecer e puxava o cobertor do lado escuro para se proteger daquela que seria não a mais fria, mas, talvez, a mais longa noite de inverno no Rio. Foi como se o Tempo, decidisse contrariar os versos de Cazuza riscados no chão da cidade. Não passará. Não passarão.
Mas a Lua, emotiva e sensível como toda boa mãe, se encontrava em Escorpião e pedia calma aos céus. Ela sabia que Marte, Mercúrio e Júpiter, reuniam-se sob seus domínios em Câncer, e que, por isso, estariam mais abertos a ouvir suas súplicas. Isso não a preocupava. O problema era Plutão, o planeta da morte e da transformação, que rege tudo aquilo que é oculto, proibido ou tabu; tudo aquilo que não se consegue, ou não se quer ver; tudo aquilo sobre o que não se deseja falar e todos aqueles bestializados e esquecidos pela moral coletiva.
Plutão estava em Capricórnio, signo regido pela força conservadora e repressora de Saturno, e fazia oposição aos desejos da Lua. Saturno estava em Escorpião, signo regido pela força misteriosa de Plutão. Apesar de estar, também, em Escorpião, e portanto, iluminada pelo profundo senso de Justiça desse signo, a lua não conseguiu convencer Plutão a mudar seus planos para aquela noite. Não haveria força no Universo que fosse capaz de impedir que Saturno em Escorpião se sentasse à mesa com Plutão em Capricórnio.
Profundamente irritado pela insistência da Lua em trazer alguma luz para o impasse, Plutão cuidou para que as forças das sombras comandadas por ele e para que as forças das profundezas comandadas por Netuno levantassem nuvens de fumaça para ocultar a Lua e confundir ainda mais as pessoas na Terra.
Uma nova fogueira ardia mais adiante no cruzamento da General San Martin com a Rainha Guilhermina. Dali onde eu estava não se via um veículo na rua. Estava deserta, abandonada. Também não se via uma viva alma. Nem o vento parecia passar por ali recusando-se a semear lágrimas de fogo. Alguns dos postes, que dão o tom amarelado da noite do bairro, também se calaram. Escurecia.
A Lua, com os nervos à flor da pele, começou a ficar muito preocupada e mal podia conter toda sua ansiedade. Sabia que Saturno em Escorpião seria capaz de tudo para manter a sensação de poder e se sentir seguro. E que se tivesse a ajuda de Plutão conseguiria manipular os acontecimentos à seu bel prazer e esconder a verdade. Logo que soube que o encontro secreto entre Plutão e Saturno aconteceria, e temendo por seus filhos na Terra, a Lua, mesmo sabendo que Mercúrio ainda estava meio embriagado de sono, acordou-o no meio da noite e pediu que levasse a Terra uma mensagem.
Mercúrio, retrógrado e ainda meio sonolento, fez corpo mole e disse que não queria ir. Mas a Lua estava em Escorpião e não havia nada nesse mundo que a impedisse de conseguir que sua mensagem chegasse a Terra. Conseguiu convencer Mercúrio de que era muito importante que ele levasse aquela mensagem e prometeu-lhe uma Lua nova em Gêmeos e Virgem, signos regidos por ele, ainda naquele ano.
Mercúrio roubou a chama de uma das fogueiras e foi chamar o Vento nos quatro cantos do mundo para espalhar as nuvens de fumaça que Plutão e Netuno tinham invocado para calar a Lua. As nuvens se dissiparam e a Lua ressurgiu anunciando à todos na Terra para ter cuidado porque naquela noite nada seria o que parece ser.
E antes que Plutão pudesse abrir os portões do mundo dos mortos e cavalgar pela noite com seus corcéis negros e foscos, houve um longo minuto de silêncio.
Estava de costas para a encruzilhada quando tudo aconteceu. Um barulho surdo, vindo da minha esquerda, onde os policiais do choque se enfileiravam, quebrou o silêncio que mais soava como um mau presságio. Alguma coisa fora atirada contra eles. Quando me virei, um outro objeto, em chamas, cruzava o espaço entre os dois grupos em direção aos policiais. Não demorou muito para as bombas começarem a pipocar e um diálogo nada amistoso tomar forma. Os manifestantes respondiam com pedras portuguesas ou o que estivesse à mão. Rajadas de bala de borracha, que envergonham o choro da seringueira, elevavam o tom da discussão.
Os policiais continuaram a lançar bombas em direção às pessoas que estavam na Aristides Espíndola obrigando-as a dispersar em direção à Ataulfo de Paiva. As pessoas que, como eu, se encontravam na General San Martin tentavam se aproximar do cruzamento para ver o que acontecia e documentar da forma que fosse possível, mas também eram eventualmente reprimidas e voltavam a se afastar. Ficamos nesse vai e vem por algum tempo até o momento em que se ouviu aquele som característico do lançamento da primeira bomba de gás da noite. As bombas continuavam a explodir mas o choque não saía do seu quadrado.
Num determinado momento, um grupo de policiais corria em direção ao QG do choque quando foram interceptados por um homem já de meia idade e de aparência bem distinta que caminhava na direção contrária com uma bermuda azul clara, camiseta branca e um par de havaianas. O homem parecia ser um morador do bairro e começou a reclamar com os policiais. Quando cheguei perto, o grupo se dispersou. Cada um seguiu seu caminho, mas o homem se afastava gritando: “O Cabral é empregado! Eles sabem que estão protegendo bandido!”.
As bombas de gás haviam sido bem eficientes em afastar as pessoas da esquina da Aristides e o grupo se concentrava no cruzamento da Rita Ludolf quando viu-se o Choque romper a linha de contenção e avançar em direção à Ataulfo de Paiva para onde haviam dispersado os manifestantes. Na encruzilhada, o grupo se dividiu. Uma parte seguiu em direção à Ataulfo e outra parte caminhava, agora, na nossa direção. Houve pânico. As pessoas começaram a correr em todas as direções. A coisa estava ficando preta.
O único lugar da rua onde parecia haver algum sinal de vida era no Black Bar, um lounge estiloso no último quarteirão da General, onde algumas pessoas muito bem vestidas tomavam drinks e socializavam. Os garçons apressavam-se em retirar as mesas colocadas na calçada temendo confusão e destruição de patrimônio. Os clientes estavam visivelmente tensos na varanda.
Eu me posicionei em frente ao bar. Caso alguma coisa acontecesse, não estaria sozinho. Mas para alívio geral, o grupo do choque que caminhava em nossa direção dobrou à direita quando chegou na esquina da rua Rita Ludolf e também se dirigiu em direção à Ataulfo. Eles pareciam se movimentar no sentido de encurralar os manifestantes por lá exatamente como fizeram na Senador Correa com os manifestantes presentes ao protesto do dia 11 de Julho em Laranjeiras.
Foi quando vi um rapaz bem branquinho, que não devia ter nem vinte anos e que também havia procurado proteção na frente do bar, ser abordado por dois policiais enormes que tentavam fazer com que o menino lhes entregasse a câmera dele. Não pude ignorar o que acontecia e fiquei observando a cena. Eles eram altos, largos e pesados o que tornava ainda mais evidente a fragilidade do menino, que apesar de estar visivelmente intimidado, tentava se defender como podia mantendo sua câmera o mais afastada possível do alcance dos policiais.
Os policiais valiam-se de uma linguagem corporal desnecessariamente agressiva para abordá-lo. Perguntaram se o menino era jornalista tentando sugerir que ele não poderia estar ali tirando fotos caso não fosse. O menino, por medo, ou talvez, por antecipar a motivação por trás de pergunta tão ilegitimamente formulada, respondeu que era. Mas ao perceber que os policiais não se dariam por satisfeitos, começou a argumentar – como deveria ter feito desde o início – que não precisava ser jornalista para poder tirar fotos do protesto. O que confirmou a suspeita dos policiais de que sua primeira afirmação faltava com a verdade. Eles aumentavam a pressão psicológica e o jogo de nervos em cima do menino numa demonstração inaceitável de covardia e abuso de autoridade.
– Afinal de contas, você é ou não é jornalista?, perguntavam.
O menino, muito nervoso, se enrolava a cada resposta e mal tinha tempo para pensar no que dizer pois os policiais pareciam não estar ali para ouvir e faziam uma pergunta atrás da outra para deixar seu interlocutor atordoado. E apesar de tudo acontecer ali na cara das pessoas bebendo no bar, ninguém dizia uma palavra em defesa do menino.
Quando me dei conta estava no meio do buraco negro. Disse ao policial que abordavam o rapaz de maneira inadequada, que as perguntas que faziam à ele eram improcedentes, que ele tinha o direito de tirar fotos daquilo que quisesse e que ele não precisaria ser um jornalista para fazê-lo. Um dos policiais, pela primeira vez pareceu perceber que havia pessoas ali testemunhando tudo aquilo e se dirigiu em minha direção com a mesma propriedade que se dirigia ao rapaz mas visivelmente irritado por eu ter quebrado o silêncio que lhe permitia acreditar que não tivesse que ser forçado a prestar contas sobre seu comportamento.
Como eu também já estava muito indignado com toda aquela cena fui facilmente envolvido pela brutalidade e pela ignorância dele e comecei a elevar o tom da minha voz também. Começou um bate boca no meio da rua. Mas depois de alguns minutos percebi que tinha caído no jogo dele. Senti uma presença como que a me aconselhar a baixar o tom da voz, a voltar para o centro e não alimentar aquela situação. Foi o que fiz. Baixei a voz e dizia à ele:
– A gente não precisa conversar dessa maneira. Você não deve se dirigir dessa forma aos cidadãos.
– Eu também sou um cidadão! Você sabia disso?!?!, esbravejava ele enquanto se aproximava de mim como que me obrigando a recuar fisicamente para mostrar quem estava no controle ali.
Eu recuava sem problema enquanto respondia:
– Isso. Nós dois somos cidadãos e não precisamos falar dessa maneira para resolver nossos problemas.
– Como é que você quer que eu fale, hein?, gritava.
E mantendo meu tom de voz tranquilo, respondi:
– Assim…
O PM perdeu completamente a linha, foi como se o poder dele tivesse desaparecido no momento em que eu parei de jogar o jogo dele. Quase sem saber começava a trazer o escorpião para o círculo de fogo. Enlouquecido, me mandou tomar no mesmo lugar que os manifestantes insistem em matar a sede de Sérgio Cabral. E xingou minha mãe.
A essa altura eu já não conseguia mais ver o menino. Ele tinha sumido. Fiquei feliz por um segundo. Ao notar que seu companheiro estava perdendo a linha, o outro policial que já não importunava mais ninguém, se aproximou. Começou a perguntar quem eu era e o que estava fazendo ali. Pedia insistentemente a minha documentação dizendo:
– Me dá sua identidade aí, vai! Vamos ver se você é uma pessoa de bem!
A minha primeira reação foi de tentar resistir ao pedido dele, afinal de contas não havia feito nada de errado para justificar aquele tipo de abordagem. Mas depois lembrei de um detalhe, e deixei ele acreditar que estava no comando. O círculo de fogo se fechava. Não demoraria muito para que o escorpião provasse um pouco de seu próprio veneno.
Nesse momento, enquanto abria a carteira para pegar minha identidade, apareceu o homem que viria a conhecer mais tarde pelo nome de Pedro. Pedro era um pouco mais baixo que eu. Tinha uma aparência muito tranquila e se colocou ao meu lado como uma pedra de Xangô, deus iorubá da Justiça, e, coincidentemente, orixá também associado ao elemento fogo. O PM descontrolado havia se afastado. Tirei a minha identidade da capa plástica que a protegia e entreguei o documento ao policial. Pedro observava em silêncio. Nessa hora, o policial tirou um taser do bolso e, para usá-lo como uma lanterna a fim de poder ler o que dizia o documento, promoveu um pequena descarga elétrica no equipamento. Foi possível ouvir o som da descarga. Pedro, que até então se mantinha em silêncio, reagiu assustado ao terrorismo psicológico:
– Choque?!, perguntou.
O policial nem olhou para ele e continuou lendo a minha carteira. Olhou de um lado. Olhou do outro. Permanecia em silêncio. Eu sabia exatamente o que estava acontecendo. E, aos poucos, o alívio que já sentia, ia se transformando em uma forma de revolta e indignação. Desligou a lanterna e estendeu a mão me devolvendo o documento:
– Muito obrigado, pode ir.
Virou as costas e desapareceu. Eu caminhei em direção ao Black Bar onde um homem me perguntou o que havia acontecido. Enquanto contava a estória, uma mulher que estava sentada na varanda interrompeu minha narrativa quase que murmurando, ou como se estivesse pensando alto:
– Ele fez tudo aquilo para se defender…
– Como assim, senhora?, perguntei sem entender do quê eles estariam se defendendo.
Uma outra mulher, de cabelos longos e negros, bem mais jovem e muito bonita respondeu:
– Eles estavam aqui bebendo quando o rapazinho apareceu. Acho que eles pensaram que o rapaz teria fotografado eles bebendo e começaram a importuná-lo.
A Lua mantinha sua palavra: Nada será o que parece ser.
Deixei o Black Bar e caminhei em direção a Pedro, foi quando ele se apresentou e disse ser membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB. Trocamos algumas impressões sobre tudo o que estava acontecendo por alguns minutos; nos despedimos e seguimos para a Ataulfo de Paiva por calçadas opostas. No meio do caminho me toquei que, durante nossa conversa, não havia me apresentado. Atravessei a rua correndo, estendi-lhe a mão e me apresentei. Muito prazer!
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