Capítulo III – Helenas na encruzilhada
Logo que cheguei no cruzamento da Rainha Guilhermina com a General San Martin um rapaz magro, de pele bem branca e músculos definidos ajoelhava-se sobre o asfalto sem camisa e, como se estivesse em transe, incorporava Cazuza riscando os versos de O tempo não para com giz branco: transformam o país inteiro num puteiro porque assim se ganha mais dinheiro.
Deu meia-noite. A lua apareceu em Escorpião. Lá na encruzilhada, agora eram os meninos que trancavam a rua onde os versos se multiplicavam pelo asfalto e brotavam livremente do chão como minas de prata. O vendedor passava vendendo cerveja. As pessoas pisavam nas palavras que explodiam em voz. Em vocação. Evocação. Presença. O grupo foi crescendo. Mais pessoas, vindas da praia, iam se achegando. Os ninjas anarquistas foram recebidos calorosamente. O vendedor passava vendendo cerveja. Para completar a cena com chave de ouro, avistei, do outro lado da rua, um menino todo de preto que se enrolava em um pedaço de cetim vermelho como se usasse uma capa. Cruzei os dedos. Palmas para o chão em reverência. Laroê, Exu!
As pessoas decidiram deliberar em grupo, e o mais democraticamente possível, sobre qual deveria ser o próximo passo dado. Sentaram-se todos no chão e começaram o MicSynching nos moldes do que foi apresentado ao mundo pelos manifestantes dos movimentos Occupy Wall street de 15 de Outubro de 2012. A menina que orava explicava que havia três grupos: um na Ataulfo, um na praia, de onde muitos dos que ali estavam tinham vindo — inclusive eu — e a nossa falange. O grupo decidiu seguir em direção à Ataulfo de Paiva.
No caminho lia-se pelo chão: Leblon, seu asfalto novo são os professores que não temos. Outro verso dizia: vandalismo é destruir escola para estacionamento do Maracanã. Não sabia, mas tínhamos chegado em frente ao prédio de Pezão, o vice-governador. Os ogãs puxavam um ponto com muito mais axé e a poesia desencantou. A gira virava a roda da vida. Roda, roda, roda e avisa. Depois de vários minutos de palavras pedindo a cabeça do Pé, seguimos em direção da Ataulfo de Paiva. Os manifestantes chamavam as pessoas que jantavam no restaurante Tailandês mais caro do mundo para se juntarem à eles nas ruas chegando, às vezes, até a assustá-las de tão distraídas que estavam do outro lado do Rio que separa realidades tão distantes, tão dissonantes.
Ao chegarmos à Ataulfo, dobramos à direita e caminhamos em direção a Ipanema apesar da oposição de algumas pessoas que argumentavam que isso seria um erro já que a rua se encontrava bloqueada naquela direção pelas obras do metrô. A uma quadra do primeiro canteiro de obras, ali nas cercanias da Praça Antero de Quental, o grupo decidiu retornar. Voltávamos a nos dirigir ao Baixo Leblon, onde tudo havia começado, e caminhávamos agora contra o pouco tráfego que era liberado para a Ataulfo. Um rapaz, comendo seu hamburguer, se esforçava para cruzar a manifestação que apareceu no meio do caminho entre sua casa e a academia equilibrando o sanduíche entre os dedos engordurados.
Sempre que chegávamos a um cruzamento uns meninos se apressavam em sentar-se no chão para trancar as ruas. Outros riscavam pontos no asfalto evocando os mensageiros da manifestação. Batiam o pé, com pressa, com fé; e batiam cabeça, em prece, de pé; E na palma da mão, cantavam para subir a rampa de suas vidas.
Estávamos de volta ao Baixo ainda em alto astral. Algumas lojas desenrolavam seus portões de ferro com medo do pior. Viramos à esquerda na Aristides. Ao contrário do que aconteceu em Laranjeiras na semana passada, poucas pessoas se aventuravam a aparecer nas janelas. Não vi ninguém piscando luzes ou batendo panelas em apoio aos manifestantes. Uma vez ou outra, a duras penas, podia-se mirar o vulto das helenas nas janelas dos prédios. Ocultas e serenas, quase abandonadas, se recolhem atrás de camadas de insulfilm ou dentro da escuridão do apartamento. Entretanto, dois vizinhos de andares mais próximos ao chão de um prédio do lado direito da rua conversavam, abertamente, debruçados no parapeito de suas janelas.
Ainda na calçada da esquerda, passei por um casal em pé ao lado de duas caixas de papelão cheias de entulho. As caixas me chamaram a atenção, mas segui meu caminho. Estava de volta às grades de contenção. Eu e o menino que havia se fantasiado de Chávez. O que ainda é um delicioso mistério para mim. O resto do grupo tinha ficado para trás. Estava tudo tão tranquilo que deu tempo para eu contar quantos soldados estavam ali em pé na minha frente. Eram trinta e quatro.
Alguém trouxe as caixas para o meio da encruzilhada e colocou fogo nelas. Urano estava em Áries afinal. Enquanto as caixas queimavam, vários fotógrafos se aproximaram para capturar o momento. Fez-se uma roda em torno do fogo e, logo, tudo aquilo que subia como vagalume nevava de volta à terra como cinza anunciando que o vento estava para mudar e que não seria muito tempo até a entrada triunfante do Senhor da guerra e de seus cavalos de fogo. Os homens de cinza apenas observavam de dentro do curral que construíram para proteger o bezerro dourado que paga o leitinho das crianças. Eles não tem gosto ou vontade, nem defeito nem qualidade, tem medo apenas. Mas no fim da noite aos pedaços, quase sempre voltam pros braços, de suas pequenas, Helenas.
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