sexta-feira, 19 de julho de 2013

Tulherias Bossa Nova
Le 17 Juillet de l’anné 457 dans la mort du évêque Sardinha

Capítulo IV – Na roda de fogo com o escorpião de prata
No céu, a Lua, quase pela metade, parecia não querer testemunhar o que estava prestes a acontecer e puxava o cobertor do lado escuro para se proteger daquela que seria não a mais fria, mas, talvez, a mais longa noite de inverno no Rio. Foi como se o Tempo, decidisse contrariar os versos de Cazuza riscados no chão da cidade. Não passará. Não passarão.

Mas a Lua, emotiva e sensível como toda boa mãe, se encontrava em Escorpião e pedia calma aos céus. Ela sabia que Marte, Mercúrio e Júpiter, reuniam-se sob seus domínios em Câncer, e que, por isso, estariam mais abertos a ouvir suas súplicas. Isso não a preocupava. O problema era Plutão, o planeta da morte e da transformação, que rege tudo aquilo que é oculto, proibido ou tabu; tudo aquilo que não se consegue, ou não se quer ver; tudo aquilo sobre o que não se deseja falar e todos aqueles bestializados e esquecidos pela moral coletiva.

Plutão estava em Capricórnio, signo regido pela força conservadora e repressora de Saturno, e fazia oposição aos desejos da Lua. Saturno estava em Escorpião, signo regido pela força misteriosa de Plutão. Apesar de estar, também, em Escorpião, e portanto, iluminada pelo profundo senso de Justiça desse signo, a lua não conseguiu convencer Plutão a mudar seus planos para aquela noite. Não haveria força no Universo que fosse capaz de impedir que Saturno em Escorpião se sentasse à mesa com Plutão em Capricórnio.

Profundamente irritado pela insistência da Lua em trazer alguma luz para o impasse, Plutão cuidou para que as forças das sombras comandadas por ele e para que as forças das profundezas comandadas por Netuno levantassem nuvens de fumaça para ocultar a Lua e confundir ainda mais as pessoas na Terra.

Uma nova fogueira ardia mais adiante no cruzamento da General San Martin com a Rainha Guilhermina. Dali onde eu estava não se via um veículo na rua. Estava deserta, abandonada. Também não se via uma viva alma. Nem o vento parecia passar por ali recusando-se a semear lágrimas de fogo. Alguns dos postes, que dão o tom amarelado da noite do bairro, também se calaram. Escurecia.

A Lua, com os nervos à flor da pele, começou a ficar muito preocupada e mal podia conter toda sua ansiedade. Sabia que Saturno em Escorpião seria capaz de tudo para manter a sensação de poder e se sentir seguro. E que se tivesse a ajuda de Plutão conseguiria manipular os acontecimentos à seu bel prazer e esconder a verdade. Logo que soube que o encontro secreto entre Plutão e Saturno aconteceria, e temendo por seus filhos na Terra, a Lua, mesmo sabendo que Mercúrio ainda estava meio embriagado de sono, acordou-o no meio da noite e pediu que levasse a Terra uma mensagem.

Mercúrio, retrógrado e ainda meio sonolento, fez corpo mole e disse que não queria ir. Mas a Lua estava em Escorpião e não havia nada nesse mundo que a impedisse de conseguir que sua mensagem chegasse a Terra. Conseguiu convencer Mercúrio de que era muito importante que ele levasse aquela mensagem e prometeu-lhe uma Lua nova em Gêmeos e Virgem, signos regidos por ele, ainda naquele ano.

Mercúrio roubou a chama de uma das fogueiras e foi chamar o Vento nos quatro cantos do mundo para espalhar as nuvens de fumaça que Plutão e Netuno tinham invocado para calar a Lua. As nuvens se dissiparam e a Lua ressurgiu anunciando à todos na Terra para ter cuidado porque naquela noite nada seria o que parece ser.

E antes que Plutão pudesse abrir os portões do mundo dos mortos e cavalgar pela noite com seus corcéis negros e foscos, houve um longo minuto de silêncio.

Estava de costas para a encruzilhada quando tudo aconteceu. Um barulho surdo, vindo da minha esquerda, onde os policiais do choque se enfileiravam, quebrou o silêncio que mais soava como um mau presságio. Alguma coisa fora atirada contra eles. Quando me virei, um outro objeto, em chamas, cruzava o espaço entre os dois grupos em direção aos policiais. Não demorou muito para as bombas começarem a pipocar e um diálogo nada amistoso tomar forma. Os manifestantes respondiam com pedras portuguesas ou o que estivesse à mão. Rajadas de bala de borracha, que envergonham o choro da seringueira, elevavam o tom da discussão.

Os policiais continuaram a lançar bombas em direção às pessoas que estavam na Aristides Espíndola obrigando-as a dispersar em direção à Ataulfo de Paiva. As pessoas que, como eu, se encontravam na General San Martin tentavam se aproximar do cruzamento para ver o que acontecia e documentar da forma que fosse possível, mas também eram eventualmente reprimidas e voltavam a se afastar. Ficamos nesse vai e vem por algum tempo até o momento em que se ouviu aquele som característico do lançamento da primeira bomba de gás da noite. As bombas continuavam a explodir mas o choque não saía do seu quadrado.

Num determinado momento, um grupo de policiais corria em direção ao QG do choque quando foram interceptados por um homem já de meia idade e de aparência bem distinta que caminhava na direção contrária com uma bermuda azul clara, camiseta branca e um par de havaianas. O homem parecia ser um morador do bairro e começou a reclamar com os policiais. Quando cheguei perto, o grupo se dispersou. Cada um seguiu seu caminho, mas o homem se afastava gritando: “O Cabral é empregado! Eles sabem que estão protegendo bandido!”.

As bombas de gás haviam sido bem eficientes em afastar as pessoas da esquina da Aristides e o grupo se concentrava no cruzamento da Rita Ludolf quando viu-se o Choque romper a linha de contenção e avançar em direção à Ataulfo de Paiva para onde haviam dispersado os manifestantes. Na encruzilhada, o grupo se dividiu. Uma parte seguiu em direção à Ataulfo e outra parte caminhava, agora, na nossa direção. Houve pânico. As pessoas começaram a correr em todas as direções. A coisa estava ficando preta.

O único lugar da rua onde parecia haver algum sinal de vida era no Black Bar, um lounge estiloso no último quarteirão da General, onde algumas pessoas muito bem vestidas tomavam drinks e socializavam. Os garçons apressavam-se em retirar as mesas colocadas na calçada temendo confusão e destruição de patrimônio. Os clientes estavam visivelmente tensos na varanda.

Eu me posicionei em frente ao bar. Caso alguma coisa acontecesse, não estaria sozinho. Mas para alívio geral, o grupo do choque que caminhava em nossa direção dobrou à direita quando chegou na esquina da rua Rita Ludolf e também se dirigiu em direção à Ataulfo. Eles pareciam se movimentar no sentido de encurralar os manifestantes por lá exatamente como fizeram na Senador Correa com os manifestantes presentes ao protesto do dia 11 de Julho em Laranjeiras.

Foi quando vi um rapaz bem branquinho, que não devia ter nem vinte anos e que também havia procurado proteção na frente do bar, ser abordado por dois policiais enormes que tentavam fazer com que o menino lhes entregasse a câmera dele. Não pude ignorar o que acontecia e fiquei observando a cena. Eles eram altos, largos e pesados o que tornava ainda mais evidente a fragilidade do menino, que apesar de estar visivelmente intimidado, tentava se defender como podia mantendo sua câmera o mais afastada possível do alcance dos policiais.

Os policiais valiam-se de uma linguagem corporal desnecessariamente agressiva para abordá-lo. Perguntaram se o menino era jornalista tentando sugerir que ele não poderia estar ali tirando fotos caso não fosse. O menino, por medo, ou talvez, por antecipar a motivação por trás de pergunta tão ilegitimamente formulada, respondeu que era. Mas ao perceber que os policiais não se dariam por satisfeitos, começou a argumentar – como deveria ter feito desde o início – que não precisava ser jornalista para poder tirar fotos do protesto. O que confirmou a suspeita dos policiais de que sua primeira afirmação faltava com a verdade. Eles aumentavam a pressão psicológica e o jogo de nervos em cima do menino numa demonstração inaceitável de covardia e abuso de autoridade.

– Afinal de contas, você é ou não é jornalista?, perguntavam.

O menino, muito nervoso, se enrolava a cada resposta e mal tinha tempo para pensar no que dizer pois os policiais pareciam não estar ali para ouvir e faziam uma pergunta atrás da outra para deixar seu interlocutor atordoado. E apesar de tudo acontecer ali na cara das pessoas bebendo no bar, ninguém dizia uma palavra em defesa do menino.

Quando me dei conta estava no meio do buraco negro. Disse ao policial que abordavam o rapaz de maneira inadequada, que as perguntas que faziam à ele eram improcedentes, que ele tinha o direito de tirar fotos daquilo que quisesse e que ele não precisaria ser um jornalista para fazê-lo. Um dos policiais, pela primeira vez pareceu perceber que havia pessoas ali testemunhando tudo aquilo e se dirigiu em minha direção com a mesma propriedade que se dirigia ao rapaz mas visivelmente irritado por eu ter quebrado o silêncio que lhe permitia acreditar que não tivesse que ser forçado a prestar contas sobre seu comportamento.

Como eu também já estava muito indignado com toda aquela cena fui facilmente envolvido pela brutalidade e pela ignorância dele e comecei a elevar o tom da minha voz também. Começou um bate boca no meio da rua. Mas depois de alguns minutos percebi que tinha caído no jogo dele. Senti uma presença como que a me aconselhar a baixar o tom da voz, a voltar para o centro e não alimentar aquela situação. Foi o que fiz. Baixei a voz e dizia à ele:

– A gente não precisa conversar dessa maneira. Você não deve se dirigir dessa forma aos cidadãos.
– Eu também sou um cidadão! Você sabia disso?!?!, esbravejava ele enquanto se aproximava de mim como que me obrigando a recuar fisicamente para mostrar quem estava no controle ali.
Eu recuava sem problema enquanto respondia:
– Isso. Nós dois somos cidadãos e não precisamos falar dessa maneira para resolver nossos problemas.
– Como é que você quer que eu fale, hein?, gritava.
E mantendo meu tom de voz tranquilo, respondi:
– Assim…

O PM perdeu completamente a linha, foi como se o poder dele tivesse desaparecido no momento em que eu parei de jogar o jogo dele. Quase sem saber começava a trazer o escorpião para o círculo de fogo. Enlouquecido, me mandou tomar no mesmo lugar que os manifestantes insistem em matar a sede de Sérgio Cabral. E xingou minha mãe.

A essa altura eu já não conseguia mais ver o menino. Ele tinha sumido. Fiquei feliz por um segundo. Ao notar que seu companheiro estava perdendo a linha, o outro policial que já não importunava mais ninguém, se aproximou. Começou a perguntar quem eu era e o que estava fazendo ali. Pedia insistentemente a minha documentação dizendo:

– Me dá sua identidade aí, vai! Vamos ver se você é uma pessoa de bem!

A minha primeira reação foi de tentar resistir ao pedido dele, afinal de contas não havia feito nada de errado para justificar aquele tipo de abordagem. Mas depois lembrei de um detalhe, e deixei ele acreditar que estava no comando. O círculo de fogo se fechava. Não demoraria muito para que o escorpião provasse um pouco de seu próprio veneno.

Nesse momento, enquanto abria a carteira para pegar minha identidade, apareceu o homem que viria a conhecer mais tarde pelo nome de Pedro. Pedro era um pouco mais baixo que eu. Tinha uma aparência muito tranquila e se colocou ao meu lado como uma pedra de Xangô, deus iorubá da Justiça, e, coincidentemente, orixá também associado ao elemento fogo. O PM descontrolado havia se afastado. Tirei a minha identidade da capa plástica que a protegia e entreguei o documento ao policial. Pedro observava em silêncio. Nessa hora, o policial tirou um taser do bolso e, para usá-lo como uma lanterna a fim de poder ler o que dizia o documento, promoveu um pequena descarga elétrica no equipamento. Foi possível ouvir o som da descarga. Pedro, que até então se mantinha em silêncio, reagiu assustado ao terrorismo psicológico:
– Choque?!, perguntou.

O policial nem olhou para ele e continuou lendo a minha carteira. Olhou de um lado. Olhou do outro. Permanecia em silêncio. Eu sabia exatamente o que estava acontecendo. E, aos poucos, o alívio que já sentia, ia se transformando em uma forma de revolta e indignação. Desligou a lanterna e estendeu a mão me devolvendo o documento:
– Muito obrigado, pode ir.
Virou as costas e desapareceu. Eu caminhei em direção ao Black Bar onde um homem me perguntou o que havia acontecido. Enquanto contava a estória, uma mulher que estava sentada na varanda interrompeu minha narrativa quase que murmurando, ou como se estivesse pensando alto:
– Ele fez tudo aquilo para se defender…
– Como assim, senhora?, perguntei sem entender do quê eles estariam se defendendo.
Uma outra mulher, de cabelos longos e negros, bem mais jovem e muito bonita respondeu:
– Eles estavam aqui bebendo quando o rapazinho apareceu. Acho que eles pensaram que o rapaz teria fotografado eles bebendo e começaram a importuná-lo.

A Lua mantinha sua palavra: Nada será o que parece ser.

Deixei o Black Bar e caminhei em direção a Pedro, foi quando ele se apresentou e disse ser membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB. Trocamos algumas impressões sobre tudo o que estava acontecendo por alguns minutos; nos despedimos e seguimos para a Ataulfo de Paiva por calçadas opostas. No meio do caminho me toquei que, durante nossa conversa, não havia me apresentado. Atravessei a rua correndo, estendi-lhe a mão e me apresentei. Muito prazer!

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Tulherias Bossa Nova
Le 17 Juillet de l’anné 457 dans la mort du évêque Sardinha

Capítulo III – Helenas na encruzilhada
Logo que cheguei no cruzamento da Rainha Guilhermina com a General San Martin um rapaz magro, de pele bem branca e músculos definidos ajoelhava-se sobre o asfalto sem camisa e, como se estivesse em transe, incorporava Cazuza riscando os versos de O tempo não para com giz branco: transformam o país inteiro num puteiro porque assim se ganha mais dinheiro.

Deu meia-noite. A lua apareceu em Escorpião. Lá na encruzilhada, agora eram os meninos que trancavam a rua onde os versos se multiplicavam pelo asfalto e brotavam livremente do chão como minas de prata. O vendedor passava vendendo cerveja. As pessoas pisavam nas palavras que explodiam em voz. Em vocação. Evocação. Presença. O grupo foi crescendo. Mais pessoas, vindas da praia, iam se achegando. Os ninjas anarquistas foram recebidos calorosamente. O vendedor passava vendendo cerveja. Para completar a cena com chave de ouro, avistei, do outro lado da rua, um menino todo de preto que se enrolava em um pedaço de cetim vermelho como se usasse uma capa. Cruzei os dedos. Palmas para o chão em reverência. Laroê, Exu!

As pessoas decidiram deliberar em grupo, e o mais democraticamente possível, sobre qual deveria ser o próximo passo dado. Sentaram-se todos no chão e começaram o MicSynching nos moldes do que foi apresentado ao mundo pelos manifestantes dos movimentos Occupy Wall street de 15 de Outubro de 2012. A menina que orava explicava que havia três grupos: um na Ataulfo, um na praia, de onde muitos dos que ali estavam tinham vindo — inclusive eu — e a nossa falange. O grupo decidiu seguir em direção à Ataulfo de Paiva.

No caminho lia-se pelo chão: Leblon, seu asfalto novo são os professores que não temos. Outro verso dizia: vandalismo é destruir escola para estacionamento do Maracanã. Não sabia, mas tínhamos chegado em frente ao prédio de Pezão, o vice-governador. Os ogãs puxavam um ponto com muito mais axé e a poesia desencantou. A gira virava a roda da vida. Roda, roda, roda e avisa. Depois de vários minutos de palavras pedindo a cabeça do Pé, seguimos em direção da Ataulfo de Paiva. Os manifestantes chamavam as pessoas que jantavam no restaurante Tailandês mais caro do mundo para se juntarem à eles nas ruas chegando, às vezes, até a assustá-las de tão distraídas que estavam do outro lado do Rio que separa realidades tão distantes, tão dissonantes.

Ao chegarmos à Ataulfo, dobramos à direita e caminhamos em direção a Ipanema apesar da oposição de algumas pessoas que argumentavam que isso seria um erro já que a rua se encontrava bloqueada naquela direção pelas obras do metrô. A uma quadra do primeiro canteiro de obras, ali nas cercanias da Praça Antero de Quental, o grupo decidiu retornar. Voltávamos a nos dirigir ao Baixo Leblon, onde tudo havia começado, e caminhávamos agora contra o pouco tráfego que era liberado para a Ataulfo. Um rapaz, comendo seu hamburguer, se esforçava para cruzar a manifestação que apareceu no meio do caminho entre sua casa e a academia equilibrando o sanduíche entre os dedos engordurados.

Sempre que chegávamos a um cruzamento uns meninos se apressavam em sentar-se no chão para trancar as ruas. Outros riscavam pontos no asfalto evocando os mensageiros da manifestação. Batiam o pé, com pressa, com fé; e batiam cabeça, em prece, de pé; E na palma da mão, cantavam para subir a rampa de suas vidas.

Estávamos de volta ao Baixo ainda em alto astral. Algumas lojas desenrolavam seus portões de ferro com medo do pior. Viramos à esquerda na Aristides. Ao contrário do que aconteceu em Laranjeiras na semana passada, poucas pessoas se aventuravam a aparecer nas janelas. Não vi ninguém piscando luzes ou batendo panelas em apoio aos manifestantes. Uma vez ou outra, a duras penas, podia-se mirar o vulto das helenas nas janelas dos prédios. Ocultas e serenas, quase abandonadas, se recolhem atrás de camadas de insulfilm ou dentro da escuridão do apartamento. Entretanto, dois vizinhos de andares mais próximos ao chão de um prédio do lado direito da rua conversavam, abertamente, debruçados no parapeito de suas janelas.

Ainda na calçada da esquerda, passei por um casal em pé ao lado de duas caixas de papelão cheias de entulho. As caixas me chamaram a atenção, mas segui meu caminho. Estava de volta às grades de contenção. Eu e o menino que havia se fantasiado de Chávez. O que ainda é um delicioso mistério para mim. O resto do grupo tinha ficado para trás. Estava tudo tão tranquilo que deu tempo para eu contar quantos soldados estavam ali em pé na minha frente. Eram trinta e quatro.

Alguém trouxe as caixas para o meio da encruzilhada e colocou fogo nelas. Urano estava em Áries afinal. Enquanto as caixas queimavam, vários fotógrafos se aproximaram para capturar o momento. Fez-se uma roda em torno do fogo e, logo, tudo aquilo que subia como vagalume nevava de volta à terra como cinza anunciando que o vento estava para mudar e que não seria muito tempo até a entrada triunfante do Senhor da guerra e de seus cavalos de fogo. Os homens de cinza apenas observavam de dentro do curral que construíram para proteger o bezerro dourado que paga o leitinho das crianças. Eles não tem gosto ou vontade, nem defeito nem qualidade, tem medo apenas. Mas no fim da noite aos pedaços, quase sempre voltam pros braços, de suas pequenas, Helenas.

Tulherias Bossa Nova
Le 17 Juillet de l’anné 457 dans la mort du évêque Sardinha

Capítulo II – Chá das cinco
Quando chegamos à Praça Santos Dumont o trânsito, que já estava lento, engasgou de vez. Decidi deixar o ônibus e andar até o Baixo Leblon onde mora nosso estimado governador. A Visconde de Albuquerque estava engarrafada nos dois sentidos do canal. Atravessei a Praça Sibelius, onde um sinal luminoso anunciava a interdição da General San Martin devido à manifestação; tirei algumas fotos; e segui, apressado, pela pista da esquerda contra o fluxo do trânsito que vinha do Leblon. As famosas figueiras da rua me protegiam da luz forte dos faróis que se moviam em minha direção bem mais vagarosamente do que eu me movia na direção delas. Já era possível ouvir o som dissonante que nos embalaria noite adentro: o dos helicópteros sobrevoando a área em ebulição.

Chegava à Ataulfo de Paiva para lá de fashionably late. Encontrei-a estranhamente vazia não só por conta das obras do metrô mas também pelo controle de fluxo de tráfego que alguns homens da prefeitura faziam no local por conta da manifestação. Decidi entrar na primeira rua à direita, aquela que acaba na Praça Atahualpa, pois ali já era possível ver um grupo grande se movimentando na General San Martin.

Havia um grupo do Choque estacionado onde a Praça Atahualpa encontra a Delfim Moreira. A multidão passou por eles cantando, gritando, levantando cartazes, desfraldando bandeiras e, como sempre, documentando tudo. Mas não houve provocação de nenhuma das partes. A multidão passou e voltou a se dirigir à rua do Governador.

Pelo que entendi, até aquele momento tudo transcorria de forma bem pacífica, os grupos estavam simplesmente dando a volta nos quarteirões vizinhos ao de Sérgio Cabral pois o acesso ao trecho da Rua Aristides Espíndola, onde mora o governador, havia sido bloqueado pelos policiais do Choque tanto na esquina da praia quanto na esquina da San Martin. Uns trinta e poucos policiais alinhavam-se em cada extremidade daquele trecho da rua para impedir a passagem das pessoas e permitir, apenas, o trânsito de moradores.

Segui com o grupo de volta à rua do governador que fica um pouco depois do posto 12 onde tive uma primeira impressão de que as estrelas poderiam ter-se enganado. Fiquei olhando tudo de longe. Notei alguns rostos familiares de manifestações passadas. A faixa com os dizeres: A Polícia que reprime na Avenida é a mesma que mata na favela, presente na manifestação do dia 11 de Julho em Laranjeiras, também estava lá. A menina com o fantoche de papel machê de Sérgio Cabral e o rapaz que fora alvejado na cara com uma dose pelourinhesca de spray de pimenta em Laranjeiras também estavam presentes. Os estudantes de medicina e os voluntários da OAB. Idem.

Caminhei até onde as grades de contenção estabeleciam os limites da manifestação. Lá, também havia uma estação de bicicletas, dessas do Itaú, quase vazia, o que permitiu que muitos fotógrafos subissem na barra laranja horizontal que serve de estacionamento para as magrelas a fim de conseguir ângulos mais interessantes para suas fotos. A guarda real se mantinha, britanicamente, imóvel por trás das grades.

Mais tarde fiquei sabendo que havia três grandes grupos de manifestantes na área, mas ali onde estava, o perfil das pessoas parecia ter mais cubinhos de açúcar do que o perfil do grupo que se reunira dias atrás em frente ao Copacabana Palace. Meninos de skate e lambreta para lá e para cá, gente bem vestida parecendo ter saído do trabalho ou de uma happy hour, curiosos, estudantes, senhoras e senhores. Idades, classes, cores. Tudo muito misturado, como sempre. As pessoas numa tentativa de aprofundar a compreensão de seu entorno, debatiam as razões e os porquês de tudo aquilo e, não raro, passavam quase uma sensação de constrangimento ao justificarem sua presença ali e deixar bem claro que não devia ser confundida com qualquer traço de ausência de civilidade por parte delas. Pareciam muito preocupadas em explicar todos os motivos que as impediriam de dar àquilo um apoio mais tácito. Conflito compreensível em uma sociedade que aprende diariamente a naturalizar a violência diária imposta aos mais vulneráveis entre nós.

Há algumas semanas atrás estava em São Paulo num ônibus que descia a Consolação em direção a Praça da República quando entrou um homem que fedia tanto que sua presença não podia ser ignorada. O cheiro era repugnante. Um grupo grande saiu do ônibus logo que ele entrou. O trocador abriu as janelas perto dele e mantinha a cabeça para fora a fim de conseguir respirar. Pensei que os loucos e miseráveis, assim como os miseráveis loucos, talvez fedam dessa maneira porque nós insistimos em desenvolver estratégias elaboradas para nos convercermos de que eles não existem, de que não os vemos. E na natureza, quando um sentido falha, um outro compensa a falta.

Foi nessa hora, que, ao meu lado, surgiu um homem de barba grisalha e aparência soturna carregando uma mochila marrom clara nas costas com seu celular na mão. Ele apontava sua câmera para os policias e narrava o texto para as imagens que produzia dizendo coisas do tipo: “Aí estão pais de família, trabalhadores, cansados de ter que enfrentar esses vagabundos quase que diariamente…”.

Apesar de não discordar da abordagem dele em documentar humanidade em certos policiais, mesmo porque foi coisa documentável nas manifestações das quais participei como observador até agora, confesso que a situação me causou um certo disconforto. O homem terminou seu trabalho e partiu. Pensei em fotografá-lo, mas desisti. Saí de perto das grades de contenção e observei ele por um tempo. Ele seguiu em direção à Praça Atahualpa e sumiu na distância por conta dos meus graus de miopia.

Quando voltei para onde estava, não tardou para que avistasse o grupo de ninjas anarquistas. Não. Esses não são os meninos do Mídia Ninja que fizeram um trabalho excelente de cobertura. É um grupo que carregava cartazes e placas com o símbolo da anarquia. Estavam, em sua grande maioria, vestidos todos de preto. Uns encapuzados. Outros, não. Ás vezes, também enrolavam camisetas ao redor da cabeça deixando apenas os olhos à descoberto. Dress-code que vem ganhando muitos adeptos a cada manifestação. Não se sabe, ao certo, se fazem isso para se protegerem dos gases e temperos lançados contra eles ou se para dificultar sua identificação. Seja como for, é bom que se diga também que a estratégia que tem por objetivo dificultar a identificação do indivíduo também é muito frequentemente usada pelos membros do Choque.

Um rapaz ficava de skate para lá e para cá gritando: Rainha Guilhermina! Rainha Guilhermina! Ele tentava fazer com que as pessoas reunidas em frente à rua bloqueada saíssem dali e fossem se juntar aos outros grupos que circulavam pelo bairro. Resolvi aceitar o convite. Deixei o Rei-Sol se pôr e fui fumar um charuto com a Rainha holandesa.

Tulherias Bossa Nova
Le 17 Juillet de l’anné 457 dans la mort du évêque Sardinha

Capítulo I – O céu não está para Peixes
Saí de casa tarde. Já era quase oito da noite. O ato em frente ao apartamento do Governador, Sérgio Cabral, no Leblon, havia sido marcado para as cinco e meia da tarde. Absurda falta de planejamento. Afinal de contas, era bem sabido que Mercúrio, o planeta que rege transportes e comunicação, está retrógrado até o dia 20 desse mês.

Em astrologia, quando um planeta “anda para trás”, ele enfraquece, e não canaliza a sua energia de forma plena sobre as áreas de nossas vidas por ele regidas. Isso significa que a possibilidade de atrasos por conta de problemas no trânsito ou por conta de problemas mecânicos seriam bem prováveis. Mesmo assim, desafiei as estrelas e optei por ficar em casa até um pouco mais tarde escrevendo e acompanhando os acontecimentos pela rede.

Lá pelas sete e pouco, resolvi ir pra rua. Me armei com as armas de Jorge: uma câmera digital cuja bateria sempre me deixa na mão; o celular; uma caneta; e o bloquinho de anotações que guarda os registros da noite em frente ao Copacabana Palace, mas que ainda contava com folhas em branco suficientes para mais uma noite que tinha tudo para bombar. Fiz o check list duas vezes porque Mercúrio retrógrado também faz você esquecer as coisas, e parti para enfrentar o dragão que solta pimenta pelo nariz.

A dúvida era se seguiria pelo Jardim Botânico ou se tentaria chegar ao Leblon por Ipanema. Sabia que devido à Mercúrio, ao adiantado da hora e à manifestação, o trânsito nas proximidades estaria caótico. Deixei o acaso decidir e peguei o primeiro ônibus que me conduzisse a meu destino. Qual não foi minha surpresa quando, de cara, apareceu o 583. Quem conhece a peça sabe como costuma demorar! E segui pelo Jardim Botânico.

Era um ônibus de ar condicionado. Sempre me pergunto por que parece que os ônibus de ar condicionado circulam mais quando está frio ou quando está chovendo. De onde me sentei dava para ver a tela de televisão que entretem a viagem dos passageiros com um sarapatel de notícias, irrelevâncias sobre celebridades, programação cultural de teatro, vídeos de bichinhos fofos e conselhos astrológicos. A viagem seguia lenta já na entrada da São Clemente e eu me distraía entre a tela de dentro e a tela de fora.

Quando passávamos em frente ao Santo Inácio apareceu pela primeira vez a tela azul das dicas astrológicas onde se lia: Urano retoma movimento direto em Áries… Estava distraído. Não dei muita atenção e nem lembro a que signo se referia. O trânsito continuava lento. A cidade passava na janela e parecia seguir sua rotina normal de quarta feira.

Chegávamos no Largo dos Leões, também signo de fogo, quando olhei para dentro de novo e me deparei com a mesma tela de astrologia dizendo: Urano retoma movimento direto em Áries… Foi aí que a coisa me chamou a atenção. Apesar de distraído pela viagem, sabia que não havia passado tempo suficiente para que a programação tivesse corrido por todos os signos do zodíaco e estivesse de volta àquele signo. Mercúrio mostrava, assim como o gigante, que não estava adormecido. Alguma coisa não estava funcionando direito no sistema que alimenta o conteúdo astrológico e ele simplesmente ficava repetindo aquela mesma tela dizendo Urano retoma movimento direto em áries…

Para os não iniciados, Urano é o planeta revolucionário, aquele que quebra as regras estabelecidas pelo velho Saturno. Se relaciona com ideais de liberdade, independência e inovação. Rege os aquarianos e é responsável pela famosa intuição aquariana. Áries é o primeiro signo do zodíaco, o mais individualista, o mais impulsivo, o mais agressivo. Vem depois do sensível e universalista signo de Peixes e é regido por Marte, o planeta vermelho e Deus da guerra para os romanos. Para complicar a situação, Mercúrio está retrógrado dificultando a comunicação. O céu mandava sua mensagem.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Palavra da Salvação

Em sua fala no STF, o advogado da CNBB Hugo Cysneros de Oliveira, único a se manifestar contra a concessão de direitos civis à uniões estáveis de mesmo sexo justificou sua posição afirmando que “A pluralidade tem limites e tem por diversas razões”

Sua linha de argumentação se baseia no terceiro parágrafo do artigo 226 do capítulo VII da Constituição Federal que rege sobre a família, onde lê-se que “Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Baseando-se nisso questionou a constitucionalidade do parecer dado pelo Ministro Ayres Britto, favorável à união, alegando haver uma lacuna constitucional sobre o assunto uma vez que não se menciona na lei uniões estáveis de mesmo sexo. Sugeriu, então, que diante de tal lacuna seria mais apropriado levar o debate ao Congresso Nacional do que resolvê-lo no âmbito do Supremo pois não se deve confundir uma lacuna constitucional com não encontrar o que se quer ouvir na Constituição Federal.

Em resposta Ayres Britto respondeu: “O sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional em contrário, não se expressa como fator de desigualação jurídica. A Constituição Federal opera com intencional Silêncio. Mas a ausência de lei não é ausência do direito, porque o direito é maior que a lei”.

Mesmo assim, Cysneros achou ser necessário lembrar à Corte que sua cliente condena as uniões e os relacionamentos homossexuais chegando a insinuar que este é o preceito encontrado na Bíblia.
"O catecismo da Igreja também vê nesse tipo de comportamento algo que deve ser combatido, que não deve ser admitido por aqueles que crêem na fé católica ou cristã em geral. Como enxergar na expressão “o homem e a mulher” algo que não seja alguém do sexo masculino e alguém do sexo feminino?”

É simplesmente vergonhoso e inaceitável que um advogado traga à frente do Supremo um argumento declaradamente baseado no catecismo da Igreja. A linha de argumentação escolhida por Cysneros fere de maneira substantiva o princípio republicano de separação entre o Estado e a Igreja que caracteriza o Estado moderno. Mesmo que houvesse tal lacuna jurídica, o que foi contestado, aparentemente, não só por Ayres Britto como por todos os Ministros do Supremo, dada a unânimidade na votação, o catecismo da Igreja nunca poderia ser usado como base de fundamentação e jurisprudência jurídica em qualquer Corte de Justiça do mundo porque, certamente, feriria princípios constitucionais de maior relevância como os expressos pelo caput do artigo 5 sobre direitos e garantias fundamentais e pelos incisos I e III do artigo 19 que delineiam os contornos laicos do Estado Brasileiro.

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes
Título II Dos Direitos e garantias Fundamentais
Capítulo I Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos
Art. 5º

É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.

Titulo III Da Organização do Estado
Capitulo I Da Organização Político Administrativa
Artigo 19


Tendo-se em vista esses preceitos constitucionais, o argumento da CNBB teria que provar que a defesa da distinção entre casais homossexuais e heterossexuais no que tange aos seus direitos civis estava sendo feita em nome do interesse público para que não fosse considerada inconstitucional. Contudo, mesmo que seguissem por esse caminho, esbarrariam no inciso III que proíbe ao Estado criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.

Ainda assim, Cysneros insiste e argumenta que se deve interpretar a lei não à luz do Direito mas à luz da intenção do legislador original e da acepção estritamente literal do texto escrito como se a peça de legislação em questão não fizesse parte de um ordenamento jurídico maior.

”Aqui, o que se instala é discutir o que quis dizer o legislador constituinte originário. Acredito que ele já disse tudo. A Constituição da República falou em homem e mulher e fala também em ascendente e descendente."

Concordo com Ayres Britto que o Direito é um Silêncio que diz mais que mil palavras. E conforme vemos pelo argumento da CNBB, a Palavra, não raro, esconde o que o Silêncio tem por destino revelar. Os legisladores originais da Constituição americana não consideravam os negros nem as mulheres como cidadãos plenos quando a escreveram. Os negros só eram lembrados quando eram usados para se contabilizar quanto um Estado deveria receber do orçamento da União ou para definir quantas cadeiras no Congresso seriam atribuídas aos Estados escravistas. A inclusão dos negros na contagem de pessoas livres para esses fins contribuiu para o crescimento do tráfico de escravos, do poder político dos Estados do Sul escravista e para a intensificação do debate pelo fim da escravidão, conflito que culminou com a Guerra Civil Americana.

Em 1857, uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, que ficou conhecida como Dred Scott v Stanford, tornou jurisprudência o que até então existia como silêncio ao declarar que os negros trazidos como escravos para os Estados Unidos assim como seus descendentes, independentemente de serem ou não escravos, não se beneficiariam dos privilégios e benefícios da Constituição americana por não poderem ser considerados cidadãos americanos. Com o fim da guerra civil americana e a vitória do Norte contra o Sul escravista publicou-se a décima quarta emenda à Constituição americana versando sobre direitos de cidadania, que reverteu, em parte, os efeitos de Dred Scott v Stanford mas que complicou muito a luta das mulheres pelo direito de votar.

Apesar da décima quarta emenda declarar em seu primeiro parágrafo que todos as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos e sujeitas à sua jurisdição seriam cidadãos plenos dos Estados Unidos e do Estado onde mantivessem residência e que nenhum Estado poderia criar leis ou fazer cumprir qualquer lei existente que subtraíssem privilégios e benefícios de seus cidadãos, seu segundo parágrafo estabelecia que, quando o direito de votar em qualquer eleição para presidente, vice presidente, membros do executivo, do legislativo ou do judiciario de qualquer Estado fosse negado a cidadãos americanos HOMENS maiores de 21 anos de qualquer Estado ou fosse, esse direito, suspenso por qualquer motivo, exceto quando da participação em rebeliões ou qualquer outro crime, a base de representação do Estado em questão deveria ser reduzida na proporção que esse número de cidadãos homens estabelecesse em relação aos demais homens maiores de 21 anos daquele estado.

Ou seja, o segundo parágrafo contraria o parágrafo imediatamente anterior pois cria uma lei que tira das mulheres o direito de voto uma vez que a linguagem escolhida prevê que tal direito só poderia ser subtraído de cidadãos homens. A não ser, claro, que, naquela época, as mulheres nascidas nos Estados Unidos não fossem consideradas pessoas.

A partir dessa “lacuna” podia-se facilmente argumentar, como fez Cysneros diante do Supremo, que a intenção original do legislador não concedia o direito de voto às mulheres e que, portanto, seria inconstitucional estendê-lo à elas apesar do parágrafo primeiro desta mesma emenda definir todas as pessoas nascidas e naturalizadas nos Estados Unidos como cidadãos americanos. No que dependesse de pessoas como Cysneros, e de certo havia muitos deles à época, as mulheres e os negros americanos deveriam permanecer para sempre invisíveis aos olhos do Estado até que se redigisse, literalmente, o contrário. Assim como os casais brasileiros compostos por parceiros de mesmo sexo.

Em 1873, Susan B. Anthony fez um discurso contundente abordando a inconstitucionalidade da proibição do voto às mulheres durante o qual argumentava o seguinte:

“A única pergunta pendente agora é: as mulheres são pessoas? E eu acho difícil acreditar que qualquer um de nossos opositores teria a coragem de dizer que não. Ao sermos consideradas pessoas, nos tornamos cidadãs; e nenhum Estado tem o direito de criar leis ou fazer cumprir qualquer lei existente que subtraiam privilégios e imunidades de seus cidadãos. Assim toda a discriminação contra as mulheres na constituição e nas leis desses Estados é, hoje, inconstitucional e inócua, assim como todas aquelas contra negros.”

Tanto a décima quinta (1870) quanto a décima nona (1920) emenda da Constituição americana que garantem a extensão do direito ao voto, respectiveamente, aos negros e às mulheres foram criadas como positivação jurídica discordante da omissão intencional dos legisladores originais que aviltava negros e mulheres à condição marginal de cidadãos de segunda classe e negava-lhes o direito de receber e usufruir dos benefícios e proteções do Estado. Apesar da luta dos negros pelo reconhecimento pleno de seus direitos civis ter aduirido momento máximo apenas durante os anos 60 do século XX sob a liderança de Marthin Luther King e Rosa Park, ambas as emendas representaram um grande amadurecimento da sociedade americana que ousou fazer escolhas à luz do Direito e não à escuridão da palavra escrita e da jurisprudência da época. Ambas engendraram debates que culminaram em um consenso sobre a necessidade dessas emendas como garantia inequívoca de que a Constituição não caísse em contradição consigo mesma e perdesse sua credibilidade. Ambas promoveram um gradual entendimento de que a sociedade americana tinha muito mais a ganhar do que temia perder.

A tese de Cysneros sobre uma suposta lacuna constitucional fundamenta-se na ressurreição desse silêncio lazarento, metástase de penumbra sob a qual a CNBB e seus inquisidores togados, infelizmente, parecem ter buscado abrigo. Esse silêncio nunca esteve fundamentado no Direito conforme nos explica Ayres Britto. O silêncio original do “We the people” foi um silêncio abortado pela ignorância. Silêncio mudo que cega, que amordaça com a palavra que escurece, que nada esclarece, que navega à deriva, à mercê dos ventos das paixões e dos ódios que sopram dos púlpitos e dos altares em nome de Deus — Silêncio em sua essência, Pluralidade Absoluta — que, diante do tanto que se fala e do tão pouco que se escuta, apenas cala. E nesse Silêncio faz-se Voz. Faz-se Palavra com P maiúsculo de Plural. Ilimitado e Imediato. Faz-se luz manifesta como consciência expandida para além de nossos limites. Para além das cruzes, dos credos, dos remedos e dos remédios. Para além da vitória, seus hinos, seus exércitos e toda a sua glória.

E um novo dia desperta tranquilimitadamente mais justo.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Carta aos fundamentalistas

E-mail enviado por um estudante de teologia de Boston para Laura Schlessinger, uma personalidade do rádio americano que distribui conselhos para pessoas que ligam para seu show. Recentemente ela disse que a homossexualidade é uma abominação de acordo com Levíticos 18:22 e não pode ser perdoada em qualquer circunstância. O texto abaixo é uma carta aberta para Dra. Laura, escrita por um cidadão americano e também disponibilizada na Internet".

"Cara Dra. Laura,

Obrigado por ter feito tanto para educar as pessoas no que diz respeito à Lei de Deus. Eu tenho aprendido muito com seu show, e tento compartilhar o conhecimento com tantas pessoas quantas posso. Quando alguém tenta defender o homossexualismo, por exemplo, eu simplesmente o lembro que Levítico 18:22 claramente afirma que isso é uma abominação. Fim do debate. Mas eu preciso de sua ajuda, entretanto, no que diz respeito a algumas leis específicas e como seguí-las:

a) Quando eu queimo um touro no altar como sacrifício, eu sei que isso cria um odor agradável para o Senhor (Levítico 1:9). O problema são os meus vizinhos. Eles reclamam que o odor não é agradável para eles. Devo matá-los por heresia?

b) Eu gostaria de vender minha filha como escrava, como é permitido em Êxodo 21:7. Na época atual, qual você acha que seria um preço justo por ela?

c) Eu sei que não é permitido ter contato com uma mulher enquanto ela está em seu período de impureza menstrual (Levítico 15:19-24). O problema é: como eu digo isso a ela ? Eu tenho
tentado, mas a maioria das mulheres toma isso como ofensa.

d) Levíticos 25:44 afirma que eu posso possuir escravos, tanto homens quanto mulheres, se eles forem comprados de nações vizinhas. Um amigo meu diz que isso se aplica a mexicanos, mas não a canadenses. Você pode esclarecer isso? Por que eu não posso possuir canadenses?

e) Eu tenho um vizinho que insiste em trabalhar aos sábados. Êxodo 35:2 claramente afirma que ele deve ser morto. Eu sou moralmente obrigado a matá-lo eu mesmo?

f) Um amigo meu acha que mesmo que comer moluscos seja uma abominação (Levítico 11:10), é uma abominação menor que a homossexualidade. Eu não concordo. Você pode esclarecer esse ponto?

g) Levíticos 21:20 afirma que eu não posso me aproximar do altar de Deus se eu tiver algum defeito na visão. Eu admito que uso óculos para ler. A minha visão tem mesmo que ser 100%, ou pode-se dar um jeitinho?

h) A maioria dos meus amigos homens apara a barba, inclusive o cabelo das têmporas, mesmo que isso seja expressamente proibido em Levíticos 19:27. Como eles devem morrer?

i) Eu sei que tocar a pele de um porco morto me faz impuro (Levítico 11:6-8), mas eu posso jogar futebol americano sem usar luvas? (as bolas de futebol americano são feitas com pele de porco)

Obrigado novamente por nos lembrar que a palavra de Deus é eterna e imutável.

Seu discípulo e fã ardoroso."

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Considerações sobre a violência do Rio de Janeiro – por João Braga Arêas

Impossível não falar da violência do Rio de Janeiro e dos presentes acontecimentos. A grande mídia celebra as cenas de combate, insiste que a população, incluindo moradores das regiões de conflito, apóia os policiais. A explicação geral é: os “bandidos” reagem às UPPs, provocando incêndios e arrastões. Agora, a polícia, junto com o exército, vai dar uma solução para os problemas da violência. Problema este que é de responsabilidade dos próprios moradores de favelas. São os pobres que acabam com a tranqüilidade da sociedade. Daí o governador Cabral explicitar seu entendimento: “útero de mulher pobre é fábrica de bandidos”. E o comandante do Estado Maior da Polícia Militar, coronel Álvaro Garcia afirmar: “esta região [Vila Cruzeiro] sempre trouxe transtorno para cidade, e agora chegamos para resolver.”
(O Globo, 26/11/2011, caderno especial, p.2)


Bombardeados por esse tipo de pensamento – que criminaliza a pobreza, que vê os miseráveis culpados por sua própria miséria – e por imagens espetaculares de violência que geram pânico na classe média, é compreensível que muitas pessoas, incluindo parte dos mais pobres,apóiem e respaldem as ações de repressão. A classe média em especial não esconde sua alegria ao ver tanques de guerra se dirigindo aos morros.

Diante do desconforto de ouvir diariamente, em diversos ambientes conversas do tipo “tem mais que matar mesmo esses bandidos”, escrevo essas linhas propondo questões não presentes no senso comum. Não tenho nenhuma pretensão de explicar ou apontar o caminho para solucionar o problema da violência do Rio de Janeiro.

Vale discutir se o “bang bang” vai mesmo deixar a cidade “pacificada”. Se a repressão policial resolvesse a questão, viveríamos no melhor dos mundos. A polícia do Rio de Janeiro é a que mais mata no mundo. Uso dados de um artigo de Arbex Jr, da Caros Amigos: a taxa homicídios/ano do Rio de Janeiro é de 2.273. O estado se aproxima de todo o Irã (um país inteiro!). Aqui, morrem 34 vezes mais que a Irlanda, 22 vezes mais que o Líbano, 11 vezes mais que Israel, 54 vezes mais que os Emirados Árabes, 5 vezes mais que a Síria... Citei países que tem conflitos históricos, como Israel, ou países de “terceiro mundo”. Não comparei com uma Noruega (cuja taxa de homicídios é 60 vezes menor). E repito: comparei o estado do Rio de Janeiro com países inteiros!!! Nossa polícia mata muito (e também é uma das polícias que mais morre no mundo)!!! Portanto, mortes, coerção e “caverões” não estão faltando. Poderíamos citar inúmeros exemplos nesse sentido. Recordo de mais dois: os documentaristas de “Falcão – meninos do tráfico” entrevistaram oito menores ligados ao “movimento” quando o filme foi lançado, apenas um ainda estava vivo... Já em “Notícias de uma guerra particular”, policiais do BOPE admitem que matavam toda noite um “traficante” da Mineira e não adiantava nada...

É preciso lembrar sempre: quando ouvimos falar de mortes nas favelas, muitas vezes pessoas que supostamente morreram em tiroteios na verdade foram executadas. Isso foi comprovado nas incursões no Complexo do Alemão, em 2007, no contexto da “pacificação” para os Jogos Panamericanos. E muitos desses executados não tinham ligação com o tráfico. Convido vocês a conhecer a luta das mulheres da “Rede Contra a Violência”, de mães que perderam seus filhos pela repressão policial. Três dias atrás, conheci Márcia Jacintho que, com muita coragem, conseguiu provar que seu filho, sem vínculos com o crime, fora executado por policiais.

Na operação desta quarta-feira (24/11/2010) na Vila Cruzeiro, tão celebrada pela mídia, vale destacar o perfil de alguns dos mortos, segundo o registro de uma jornalista do Estado de São Paulo: vítimas - uma adolescente de 14 anos, atingida com uniforme escolar quando voltava para casa; um senhor de 60 anos, uma mulher de 43 anos e um homem de 29 anos que chegou morto ao hospital com claros sinais de execução. Feridos - 11 pessoas, entre elas outra estudante uniformizada, dois idosos de 68 e 81 anos, três mulheres entre 22 e 28 anos, dois homens de 40 anos, um cabo da PM e apenas dois homens entre 26 e 32 anos. O padrão de matar pobres, não raro sem ligações com tráfico, se mantém.

Esse tópico de cima nos leva a refletir sobre outro. A população das favelas está apoiando a repressão? A televisão nos diz isso toda hora! E entrevista policiais que dizem isso todo instante! Mas e as entrevistas com moradores? Nada! Bom, se você quer furar esse cerco midiático, acesse http://www.youtube.com/watch?v=Z3vteAmy5qs. Aqui, você escutará uma entrevista feita por uma rádio comunitária do Morro Santa Marta com um morador do Complexo do Alemão. Não estranhe as interrupções pelas várias rajadas de tiros.... Adianto que você não ouvirá um entusiasta das ações do BOPE...

A repressão violenta se concentra sobre os mais pobres. Como declarou o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ), são “homens de preto” que matam pobres, geralmente “pretos”. E vale lembrar: o próprio policial também é oriundo de famílias mais pobres. Um policial no Rio de Janeiro ganha muito pouco (tem o segundo pior salário do Brasil).

Um dos simplismos das versões midiáticas tem sido colocar “polícia” versus “bandidos”. Ora, por várias circunstâncias, como lembra Luiz Carlos Soares, não há nenhuma modalidade importante de ação criminal no Rio de que segmentos policiais corruptos estejam ausentes. Não vi isso destacado pela imprensa, que nos mostra os policiais como mocinhos super-heróis que irão nos salvar... Muito menos há reflexão para as causas dessa corrupção policial.

Já que falamos da pobreza dos noticiários, que apenas querem nos levar a ter medo e apoiar a ação da polícia e do Exército, vale destacar: por que esses “arrastões” e incêndios de veículos aconteceram? Ninguém sério pode acreditar que foi uma resposta às UPPs ou que o objetivo era causar danos políticos ao governador Cabral. Se fosse este último caso, por que esperar o fim das eleições para fazer as ações? Supondo que os varejistas do tráfico não sejam tão estúpidos, por que fizeram essas ações? Para chamar a repressão contra si e causar a própria morte??? Não tenho resposta para essas perguntas. Mas ressalto a necessidade de se ter senso crítico à versão dada pela grande mídia e pelas autoridades. O fato é: não sabemos o porquê disso tudo...

Acima, falei em varejistas do tráfico. Sim, pois os verdadeiros traficantes de armas e de drogas não moram na Vila Cruzeiro... O tráfico internacional de drogas movimenta cerca de 1 trilhão de dólares. Nas imagens repetidas pela TV Globo, onde homens corriam em uma estrada de terra para chegar em outro morro, víamos pessoas sem camisa... Com certeza, não são esses que mexem com os milhões e bilhões de dólares. E usam armas russas e israelenses: duvido muito que eles falem russo e hebraico para comprar esses armamentos... Logo: essas pessoas não são nem de longe as principais articuladoras do tráfico de drogas! Como se eu fosse ao McDonald’s e considerasse o atendente que me dá os big macs como “o” responsável pela lanchonete... Ora, “o” responsável pelo McDonald’s sequer está no local... O mesmo para as favelas: ali só se encontram varejistas, não os verdadeiros chefões do tráfico... Estes últimos moram de frente para a praia, em belos edifícios...

Em tempo: por que tanta hipocrisia com relação à maconha? Por que não legalizá-la se tantos a usam? Ontem (27/11), fui ao show na Lapa da Céu e do Otto. A minha volta, vários jovens fumando maconha. A verdade é que em todos os círculos de amizade, conheço pessoas que fumam ou já fumaram regularmente, incluindo: amigos da rua, da escola, da faculdade, do trabalho e da família! Por que não permitir eles plantarem em casa? Ora, porque assim, tem-se menos dinheiro... Parece que não se quer exatamente o fim do tráfico de drogas...

Por fim: de onde surgem esses “perigosos bandidos”? Isso a mídia não explica, né? Eles moram, por acaso, nas favelas e nas regiões mais pobres? Acredito ser fundamental considerar as oportunidades de cada pessoa e a classe social a qual pertencem. Eu estudei em uma escola de classe média alta do RJ. Meus amigos viraram médicos, economistas, advogados, professores... Ninguém ali cogitou virar “fogueteiro” ou chefe de boca de fumo... É preciso considerar o abismo que existe entre ricos e pobres para entender a violência. Resolver esse abismo – que envolve transformações estruturais em nossa sociedade – é a verdadeira questão. Repressão policial não é a solução. Concordo com MC Leonardo: ao invés de UPPs, que as favelas sejam invadidas com a Universidade Federal da Rocinha, com a Faculdade Estadual do Borel...

Em tempo: os verdadeiros bandidos não frequentam as seções policiais dos jornais. Mas se desejar ver os reais roubos, verifique o quanto os banqueiros receberam de “ajuda financeira” dos leais governos de vários países do mundo, a partir da crise econômica de 2008: cifras em torno de trilhões... Veja o filme de Michael Moore, “Capitalismo, uma história de amor”, que conta um pouco disto. Então, prefiro mudar a frase do governador: “o útero das classes dominantes é uma fábrica de bandidos”. Ou como lembra Lênin: “não há diferenças entre ladrões de banco e donos de banco, ambos são igualmente ladrões.”

João Braga Arêas é Doutorando de história da UFF e Professor do Colégio Pedro II