quarta-feira, 9 de junho de 2010

Mal Merval, mal Merval...

No O Globo de hoje, já prevendo o resultado da votação, Merval Pereira em sua coluna rotula o posicionamento do Brasil como novas derrotas da política externa brasileira. Escreve ele que o Brasil "tentou, sem sucesso, inviabilizar a solução defendida pelos americanos.” Pois é, parece que os tão celebrados carros-chefe da campanha presidencial de Obama que lhe renderam um prêmio Nobel da Paz simplesmente por se manifestarem como intenção, provaram-se nada mais do que isso: meras intenções.

Curioso como logo depois de firmado o acordo, a mídia tentou associar Obama ao sucesso das negociações com a estória da tal carta que teria vazado, cujo conteúdo, segundo o próprio O Globo, não teria sido comentado pelo Palácio do Planalto. Pois bem, quem mais ganharia com o “desastroso vazamento” senão o próprio Obama? Todos os comentários no site do New York Times daquele dia eram favoráveis aos esforços de Turquia e Brasil no sentido de trazer o Irã de volta à mesa de negociações e condenavam a insistência de Hillary em partir para a imposição de sanções. Mas Merval se mantinha firme em sua estória acusando o Palácio do Planalto de ter causado um desgaste desnecessário entre Washington e Brasília diante de tamanha indiscrição ao mesmo tempo que publicava ipsis litteris o conteúdo da tal carta. Se, como o próprio O Globo noticiou, o Planalto não teria comentado o conteúdo da carta, como é que ele chegou tão detalhadamente às mãos de Merval? Quem teria cometido maior “indiscrição”? Em demonstração de total subserviência ideológica acabou por lançar a hipótese de que o Brasil teria arruinado toda e qualquer chance de aspirar a uma vaga de membro permanente do Conselho de Segurança. Nos dias que se seguiram era possível sentir a torcida para que os Iranianos não cumprissem os prazos de entrega combinados para com isso alimentar ainda mais a mensagem de que não são confiáveis.

Como é que nações que, de fato, e não apenas retoricamente, implementem tais esforços podem ser acusadas de obstrucionistas? É o cúmulo da distorção, a mais completa tradução dessa deselegância nem tão discreta desses que se auto-proclamam porta vozes da sociedade brasileira. O Irã aceitou enviar todo o seu estoque de Urânio à Turquia para que lá fosse iniciado o processo de enriquecimento e que ele continuaria enriquecendo esse Urânio até os 20% permitidos para fins pacíficos em suas instalações que estão abertas às inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica. Com isso minimizaria as suspeitas dos países ocidentais sobre o destino do Urânio importado. Ironicamente, todo o circo é armado para acalmar a paranóia ocidental quando, ao que me parece, o Irã tem muito mais motivos para se sentir ameaçado. Então qual é a contrapartida dessas sanções? O que se espera do Irã? O que susan Rice quer dizer quando declara que “nosso objetivo é sempre persuadir o Irã a suspender seu programa nuclear e a negociar de maneira construtiva e de boa fé com a comunidade internacional.” Então, Brasil e Turquia não fazem parte da comunidade internacional? Não foi a iniciativa uma maneira construtiva de se lidar com o impasse? Não se conseguiu exatamente o que se pretendia quando as negociações foram interrompidas meses atrás? Que parte do acordo mediado pelos dois países não demonstra boa fé do Irã? Ou boa fé seria abdicar completamente do seu direito como nação soberana de administrar a sua matriz energética e cuidar para que seu desenvolvimento não dependa da benevolência externa?

Como o próprio Celso Amorim declarou: se for para adotar uma postura de subserviência total às grandes potências mundiais — como querem os arautos globais — não há a menor necessidade de se ter mais membros permanentes no Conselho de Segurança. Tenho muito orgulho da nossa diplomacia sob a liderança de Celso Amorim e, se ser um derrotado significa ter tido a coragem de acreditar que um outro mundo é possível e, mesmo diante de todas as dificuldades e do ceticismo ao seu redor, demonstrar um compromisso inabalável com a construção da paz, então devemos estar muito bem acompanhados nessa derrota.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Resposta a Charles Krauthammer

Como a alma da propaganda é a repetição, o Globo de hoje, publica na seção de opinião, página 7 do caderno principal, um artigo de Charles Krauthammer, jornalista do jornal americano The Washington Post. O artigo já em seu título “Os judeus são o problema” lança a velha carta do antissemitismo. É muito curioso notar como que no discurso público americano os argumentos utilizados nas reivindicações de negros que, de alguma forma, acusem a sociedade americana de racista são instantaneamente rotulados e desqualificados sob o título de the race card (a carta da raça, que tem mais um sentido retórico de a desculpa da raça). Mas ninguém é acusado de jogar a carta do antissemitismo quando, para defender as políticas fundamentalistas do Likud, acusam seus opositores de odiarem todos os judeus.

É isso que tenta fazer Charles Krauthammer em seu artigo. Quando escreve “A Turquia denuncia sua ilegalidade, desumanidade, barbaridade etc” tenta desmoralizar as reivindicações turcas como se fossem improcedentes e absurdas. O uso do eco e do etcetera como ferramentas de discurso conferem ao texto um tom de extrema arrogância pois implica a existência de outras acusações que de tão previsíveis não merecem nem ser mencionadas. Em vez de se preocupar em construir argumentos jurídicos decentes para defender Israel, tenta desqualificar todos os que se opõem a seu ponto de vista simplesmente chamando-os de idiotas úteis, simpatizantes do terror, indiferentes europeus etc. Viu o que o etcetera fez? Desqualificou o argumento como repetitivo e previsível. Entretanto, parece que alguns argumentos são mais desqualifiçáveis que outros. Não satisfeito, levanta suspeitas sobre a idoneidade da mediação da comunidade internacional, e em plena globalização, tenta ofender os países não alinhados com o já gasto, ultrapassado e pejorativo conceito de terceiro mundo.

O argumento de Krauthammer, se é que esse tipo de estratégia pode se chamar argumento, começa citando Leslie Gelb que acredita que “o bloqueio (a Gaza) não só é perfeitamente racional como legal. Gaza, sob o Hamas, é um inimigo declarado de Israel – declaração apoiada em mais de 4 mil foguetes disparados contra território Israelense”. Veremos mais adiante que tal afirmação não se sustentaria em nenhum tribunal decente do mundo.

O segundo pilar de seu argumento é uma comparação que de tão absurda só pode ter como intenção legitimar algo ilegitimável. Escreve ele: “Na Segunda Guerra Mundial, os EUA, com legalidade total, bloquearam Alemanha e Japão”. Acredite se quiser, mas a última vez que o Congresso dos Estados Unidos declarou guerra oficialmente foi durante a segunda Guerra Mundial. Dessa forma, EUA, Alemanha e Japão, todos Estados reconhecidos, não só se constituíam em sujeitos de direito internacional mas também eram, declaradamente, Estados beligerantes, o que os coloca sob um ordenamento jurídico completamente diferente daquele que rege o que aconteceu na semana passada no contexto do conflito entre Israel e Palestina. A Palestina não é reconhecida como Estado e o Hamas não é reconhecido como o governo a exercer soberania sobre o território palestino mesmo tendo sido vitorioso nas eleições de 2006. Consequentemente, nem o Hamas nem a Palestina podem ser considerados sujeitos de direito internacional. A comparação, pelo menos do ponto de vista jurídico, chega a ser infantil de tão absurda, e só pode ter sido feita de má fé. Israel se nega a reconhecer o Hamas como governo legítimo, o que seria um passo importante no processo de reconhecimento do Estado Palestino, mas se dá o direito de declarar guerra a um grupo que não é sujeito de direito internacional. Isso exemplifica muito bem o posicionamento ambíguo de Israel que explora da maneira mais imoral possível o vácuo jurídico dentro do qual mantêm todos os palestinos. Porém, é de se esperar que a mente que transforma críticas às lideranças do Likud em expressões de antissemitismo irá julgar perfeitamente racional, como disse Gelb, o uso indiscriminado da violência contra todo o povo Palestino como retaliação ao Hamas. Como costumava dizer uma nobre senadora: generalizações perversas...

Segue o autor com suas comparações:“Em 1962, durante a crise dos mísseis, em Cuba, os EUA bloquearam a ilha. (...) Ainda assim Israel é acusado de crime internacional por fazer exatamente o que John Kennedy fez”. E é aqui que o argumento toma proporções de delírio. O bloqueio à Cuba vem sendo condenado quase que anualmente pela comunidade internacional. Em 2005, a Assembléia Geral das Nações Unidas condenou o bloqueio à Cuba pela décima quarta vez! Apenas três países votaram contra a resolução. Estados Unidos, Israel e as ilhas Marshall! Em 2006, novamente, a mesma Assembléia Geral aprovou resolução de mesmo conteúdo por 183 votos a favor, 4 contra e uma abstenção. Dessa vez a nação de Palau se juntou aos Estados Unidos, Israel e Ilhas Marshall. Em 2008, a décima sexta resolução da Assembléia Geral da ONU condenando o bloqueio dos Estados Unidos à Cuba foi aprovada por ampla maioria. Votaram contra Estados Unidos, Israel e Palau. Até o Papa já condenou o bloqueio americano à Cuba quando esteve na ilha em 1977 e 1998. É claro que as votações na Assembléia Geral são simbólicas já que para ser implementada qualquer resolução deve ser aprovada pelo Conselho de Segurança onde os Estados Unidos tem poder de veto. O fato do poder de veto dos Estados Unidos no Conselho de Segurança haver perpetuado uma prática considerada ilegal tão ostensivamente por toda a comunidade internacional não pode ser usado como argumento a fim de conferir a Israel o direito de violar as normas internacionais da mesma maneira. Por outro lado, se os Estados Unidos podem por que qualquer outro país do mundo não poderia? Qual é a fonte desses direitos que parecem ser reivindicáveis somente por Israel e Estados Unidos? Direito adquirido legítimo vem do costume internacional ou de tratados. Os fundamentalistas que me desculpem mas o antigo testamento não é, nem nunca será, fonte de direito internacional.

Outro detalhe jurídico é que a Convenção de Montego Bay concluída em 10 de dezembro de 1982, que é a referência jurídica para o incidente ocorrido entre os comandos Israelenses e o navio Mavi Marmara, só entrou em vigor como prática e costume internacional em 16 de Novembro de 1994 depois de 12 meses da data de depósito do sexagésimo instrumento de ratificação ou de adesão. Ou seja, em 1962, o ordenamento jurídico que existe hoje não existia. O que não significa dizer que Kennedy não tenha violado normas de direito internacional ao impor o bloqueio à Cuba. A Conferência Naval de Londres de 1909, um dos Tratados mais antigos versando sobre as regras de engajamento militar no mar, define bloqueios como atos de guerra, ou seja, só seriam lícitos e regulamentados entre Estados declaradamente beligerantes. Diante da inexistência de uma declaração de guerra oficial entre Cuba e Estados Unidos e entre Israel e o Hamas/Palestina, juridicamente não existe conflito armado. Por conseguinte, tanto o bloqueio à Cuba quanto o bloqueio à Gaza, são considerados pelo Direito Internacional como um ato de guerra econômica e, devido à inexistência de norma internacional que o justifique em tempos de paz, podem ser enquadrados como genocídio, que, entre outros, é definido pela Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio como “submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial.”

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Uma questão de honra


Em ação quase suicida, moradores de Jabaliyah na Palestina se rebelam e matam uma dúzia de soldados Israelenses - apesar de rapidamente sufocado, levante é festejado como grande vitória pelos palestinos.
Desde 1967, aproximadamente 711.000 palestinos fugiram ou tiveram que abandonar as áreas onde viviam que ficaram sob controle do exército Israelense. Desde então os palestinos que permaneceram em seu território trataram de organizar a sua resistência. O resultado foi a criação do Hamas. O Hamas, havia meses, vinha infiltrando armas na Faixa de Gaza. Em 9 de Dezembro de 1987, finalmente, numa ação surpreendente e quase suicida, eles pela primeira vez dispararam contra os israelenses.

Evidentemente, a resistência não pode visar a libertação total da Palestina ou a destruição do aparato Israelense local, infinitamente maior e melhor aparelhado que a clandestina organização Palestina. Com essas ações, além de talvez adiar um destino que parece irreversível, o Hamas pretende pavimentar um final digno para os Palestinos da Faixa de Gaza, pontuado por orgulho e esperança. “A batalha na rua nos encorajou. Pela primeira vez desde a ocupação vimos soldados Israelenses colados às paredes, engatinhando no chão, correndo para se cobrir, hesitando antes de dar um passo, com medo de ser atingido por uma bala palestina. Os gritos dos feridos nos deram alegrias e aumentaram nossa sede de batalha”, escreveu numa carta Khaled Meshaal, integrante do grupo.

Os líderes militares Israelenses parecem estar subestimando a cólera que toma conta dos Palestinos, por todas as atrocidades contra eles cometidas, e que incita a resistência contra os Israelenses. Nos últimos anos cantos como:
“Palestina é a nossa casa
Nós nascemos aqui
Nós vivemos aqui
Nós amamos aqui
Não odiamos ninguém, mas desprezamos a injustiça
Na paz acreditamos, pela liberdade nós lutamos
Nós temos o direito de viver em paz em nossa Palestina. Por isso existe Intifada."

são entoados na Faixa de Gaza. Por tudo isso dificilmente Shimon Peres conseguiria entregar sua lição de casa na data pretendida. E a punição de Yitzhak Shamir, um dos arquitetos da solução final, não deve ser caracterizada pela clemência.

Esse texto, na verdade foi extraído do website Na História de VEJA.com, que segundo a própria revista “faz o leitor viajar no tempo: os fatos que marcaram o passado são contados por uma edição completa da revista, com os mesmos critérios editoriais dos dias atuais. Cada número busca reconstituir um exemplar de VEJA como se a revista existisse antes de 1968, ano em que o primeiro exemplar da publicação chegou às bancas.”

O conteúdo original, é claro, não se refere à intifada mas sim ao levante do Gueto de Varsóvia e pode ser encontrado na edição simulada de Fevereiro de 1943 do referido site.

A desconstrução do texto de Veja fez-se com o intuito de expor as graves semelhanças entre o levante do gueto de Varsóvia e o levante palestino contra a ocupação Israelense. Apesar das enormes semelhanças as escolhas das pessoas envolvidas nos dois conflitos são comumente compreendidas pelo discurso da grande mídia sob pontos de vistas diametralmente opostos. As posições de Veja ilustram bem esse paradoxo e comprovam que esse tipo de recurso é muito usado na grande mídia com propósitos um pouco menos nobres. Ao invés de tentar elucidar assuntos complexos, esse tipo de estratégia de comunicação é usada para simplificar, confundir e perpetuar uma ignorância conveniente que só leva à manutenção do status quo e à legitimação de mais violência.

O Globo de 5 de Junho de 2010 carrega um bom exemplo dessa estratégia. Na página 25 do caderno O Mundo dedicada à crise criada pelo ataque de Israel ao navio turco Mavi Marmara que carregava ajuda humanitária para a Faixa de Gaza lê-se na manchete: “Turquia se afasta de Israel e apoia o Hamas”. Logo abaixo, a foto principal da página mostra um homem barbudo de cenho franzido carregando um rifle com uma bandeira Turca ao fundo. Conclusão imediata: o homem seria turco e violento, o que nos dias de hoje parece ser mais do que suficiente para caracterizar alguém como terrorista.

Porém, o leitor atento continuaria a ler a legenda da imagem que dizia: “Após as orações de sexta-feira, protestos varreram o mundo islâmico: em Ayin el-Hilweh, no sul do Líbano, refugiado Palestino agita um rifle em frente a bandeira turca.” No Líbano? A foto descrita acima ilustra a reportagem de Renata Malkes que começa da seguinte maneira: “O governo da Turquia decidiu reduzir ao mínimo todos os acordos de cooperação econômica e militar com Israel.” Mais adiante Renata publica declaração do Primeiro Ministro turco Erdogan afirmando não achar que o Hamas seja uma organização terrorista. Declaração essa que recebe destaque no canto superior esquerdo da página. Todos os elementos estão aí juntos contando uma estória subliminar que diz: a Turquia é um país violento, islâmico que não merece a confiança do mundo e é aliado do Hamas e do Iran. Em momento algum menciona-se que até antes do ataque de Israel, a Turquia se constituia em um dos maiores aliados de Israel no Oriente Médio; que a Turquia, apesar da grande maioria da sua população ser muçulmana, se constitui em um Estado laico – bem diferente de Israel e do Iran que são Estados regidos pelos dogmas de suas respectivas religiões; ou que a Turquia exerce, legitimamente, sua soberania de maneira independente nos dando um grande exemplo desse posicionamento quando impediu que os Estados Unidos usassem as bases militares turcas para invadir o Iraque. É claro que essa campanha contra a Turquia tem a ver com a intermediação, fundamental, do primeiro ministro turco nas recentes negociações com o Iran. O Ocidente civilizado está retaliando com requintes de imoralidade.

Bom, sujada a barra da Turquia o discurso volta-se aos ativistas. A tarefa é a mesma. Caracterizá-los como terroristas cruéis e criminosos. Logo abaixo da legenda da foto principal, corroborando o direcionamento do discurso sendo até então empregado, uma segunda manchete afirma: “Ativistas rejeitam acordo e são cercados. Navio irlandês é interceptado por Marinha israelense a poucos quilômetros de Gaza” As duas fotos que ilustram a matéria de Daniela Kresch mostram forças policiais reprimindo os violentos manifestantes anti-Israel na Cisjordânia e em Amã. A frase é perfeita. Quando eu digo que ativistas não aceitam o acordo eu digo que Israel tentou negociar e que a intransigência e o radicalismo dos ativistas deu motivos a Israel para usar a força sem qualquer consideração sobre os aspectos jurídicos que envolvem o caso. A verdade é que não houve acordo porque, simplesmente, ninguém se encontrava dentro de território Israelense, e, que, por isso não tinham que ser obrigados a reconhecer o poder de Israel naquelas águas.

Mas Daniela não para por aí. Publica uma declaração do ministro das Relações Exteriores de Israel, Avigdor Liebermann que afirmou ao canal 1 da TV local: “Vamos bloquear esse navio e qualquer outro que tente desafiar a soberania israelense. Não há nenhuma chance que o Rachel Corrie chegue à costa de Gaza.” Soberania? Que soberania? Renata talvez não saiba (o que depõem gravemente contra ela no quesito seriedade e isenção) mas a Faixa de gaza não é reconhecida como parte de Israel. Consequentemente, Israel não pode exercer jurisprudência sobre o mar territorial da faixa de Gaza. Por isso o acordo foi recusado. Porque Israel é que estava violando costume internacional ao tentar interceptar um navio em águas consideradas internacionais. Daniela não levanta essa questão em parte alguma de sua reportagem, apenas segue com a mentira que “Por volta das 20h, o barco alcançou a marca das 100 milhas da costa de Israel – ponto onde a marinha israelense interceptou o Mavi Marmara.” Costa de Israel? Como é que poucos quilômetros se transformaram em 100 milhas marítimas? Desde quando os territórios ocupados são reconhecidos internacionalmente como parte de Israel? E mesmo que fossem parte de Israel, a distância de 100 milhas é considerada zona econômica exclusiva onde, segundo a convenção de Montego Bay, não são reconhecidos direitos de visita nem de perseguição a embarcações.

Na página seguinte, O Globo continua firme em seu propósito. Publica uma entrevista com Elisabeth Roudinesco, uma historiadora e psicanalista francesa que chega a fazer declarações muito lúcidas e pertinentes. Ela aborda a complexidade da questão da identidade judaica, manifesta seu apoio à solução de dois Estados, critica o sistema político Israelense que acaba por favorecer a permanência das forças mais reacionárias do país no poder e o pior... diz que adora o Lula!!! Todos esses assuntos renderiam um debate importante porém foram completamente esvaziados pela edição da entrevista que descambou para uma discussão inócua sobre a condenação do uso da burca e do quipá em escolas públicas francesas. Armadilha da qual a historiadora saiu com muita desenvoltura e inteligência.

O título escolhido para a entrevista, “Ataque a barco estimula o antissemitismo”, apesar das aparências, não é uma citação da entrevistada. E mesmo que fosse, seria mesmo essa a idéia mais importante da entrevista? Ou seria a ponderação sobre todas as nuances que envolvem o complexo universo da identidade judaica? Por que não destacou-se a frase “A política de Israel tem sido catastrófica” ou “o Estado (judeu) é uma coisa, os judeus são outra”? O que me leva de novo ao velho mantra e à distinção feita pela historiadora. Nem todos os judeus são israelenses e nem todo Israelense apoia o Likud. Então por que as críticas à políticas do Likud deveriam ser caracterizadas como antissemitismo? Fica claro que a associação retórica simplista foi uma tentativa de O Globo e não de sua entrevistada.

Ao ler a entrevista entende-se que Elisabeth Roudinesco, na verdade, diz o seguinte: ”Tudo isso é catastrófico para os judeus – pois estimula o antissemitismo – e também para todo o mundo.” O tudo na frase não se refere ao ataque ao barco como a editoria do jornal tenta transparecer pelo título ardilosamente disfarçado de citação, mas é uma crítica muito mais profunda às escolhas dos líderes nacionalistas do Likud que só contribuem para a radicalização e polarização do processo.

A grande maioria dos partidários do Likud apoia um movimento pela libertação de Yigal Amir, condenado à prisão perpétua pelo assassinato do então primeiro ministro Yitzhak Rabin que, em 1994, ganhou o prêmio Nobel da Paz junto com Yasser Arafat e Shimon Peres por conta dos acordos de paz de Oslo. Yigal Amir é visto como um herói por essas pessoas que são da opinião de que a política de Yitzhak Rabin colocava em risco a vida de vários Israelenses. Assim, não só justificam o seu assassinato como mostram que estão convencidos que não existe a possibilidade de um diálogo ou coexistência, o que os torna culpados do mesmo crime que acusam os integrantes do Hamas, ou seja, não aceitar a existência do Estado vizinho.

Quando o Hamas foi legitimamente eleito em 2006 Demétrio Magnoli defendeu em um editorial de O Globo o seguinte argumento: as nações civilizadas (i.e. poderes ocidentais) não devem permitir que um grupo que não acredita em valores democráticos (i.e. a existência de Israel) chegue ao poder mesmo que por vias democráticas. Agora por que esse mesmo argumento não é usado para impedir que líderes do Likud assumam a liderança de Israel já que seus eleitores consideram aceitável que se assassine um primeiro ministro que busque por uma conciliação com os Palestinos? E aí eu me lembro de quando perguntávamos como é que os alemães permitiram que as coisas chegassem àquele ponto.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Uma visão jurídica sobre o ataque de Israel

A fim de fundamentar o argumento de legítima defesa a maioria dos que defendem o ataque Israelense ao navio de ajuda humanitária Mavi Marmara invocam o manual de direito internacional humanitário de San Remo, o que se constitui em um grande equívoco, ou simplesmente má fé, uma vez que San Remo só pode ser invocado no caso de conflito armado. Conflito armado é definido no direito humanitário internacional de duas maneiras:
  • a) conflito armado internacional, quando o conflito acontece entre dois ou mais Estados juridicamente reconhecidos como sujeitos de direito internacional público.
  • b) conflito armado não-internacional, quando acontece entre forças governamentais e grupos não governamentais.
O que ocorreu não pode ser caracterizado como conflito armado nem de uma forma nem de outra. Uma vez que o navio atacado tinha nacionalidade Turca, teria que existir um conflito declarado entre o Estado Turco e o Estado de Israel para caracterizá-lo como conflito armado internacional, o que não procede. Pode-se argumentar que a guerra de Israel é contra o Hamas e a Palestina, porém o Estado da Palestina não possui soberania sobre nenhum território e por conta disso não pode ser considerado sujeito de direito internacional público.

Por outro lado, o conflito entre Israel e Palestina também não pode ser caracterizado como conflito armado não-internacional porque os territórios ocupados não são oficialmente reconhecidos pelo direito internacional como sendo parte do Estado de Israel. Essa situação deixa os palestinos em um vácuo jurídico muito perigoso que é constantemente explorado por Israel. Diante dessa impossibilidade conceitual temos que recorrer à Convenção da Jamaica ou Convenção de Montego Bay como referência jurídica para esse incidente.

Segundo as definições da Convenção da Jamaica, Israel também não poderia reivindicar direitos de Estado costeiro quando se fala da faixa de Gaza visto que esse território não faz parte do Estado de Israel.

Parte II – Mar Territorial e Zona Contígua
Seção 1 – Disposições Gerais – Artigo 2
Regime jurídico do mar territorial, seu espaço sobrejacente, leito e subsolo
“ 1. A soberania do Estado costeiro estende-se além do seu território e das suas águas interiores e, no caso de Estado arquipélago, das suas águas arquipélagas, a uma zona de mar adjacente designada pelo nome de mar territorial.
2. Esta soberania estende-se ao espaço aéreo sobrejacente ao mar territorial, bem como ao leito e ao subsolo deste mar.”

Seção 2 – Limites do Mar Territorial – Artigo 3
Largura do mar territorial
“ Todo Estado tem o direito de fixar a largura do seu mar territorial até um limite que não ultrapasse 12 milhas marítimas, medidas a partir de linhas de base determinadas de conformidade com a presente Convenção.”

Seção 4 – Zona Contígua – Artigo 33
Zona Contígua
“ 1. Numa zona contígua ao seu mar territorial denominada zona contígua, o Estado costeiro pode tomar medidas de fiscalização necessárias a:
  • a) evitar infrações às leis e regulamentos aduaneiros, fiscais, de imigração ou sanitários no seu território ou no seu mar territorial;
  • b) reprimir as infrações às leis e regulamentos no seu território ou no seu mar territorial.
2. A zona contígua não pode estender-se além de 24 milhas marítimas, contadas a partir das linhas de base que servem para medir a largura do mar territorial.”

Parte V – Zona Econômica Exclusiva
Artigo 55
Regime jurídico específico da zona econômica exclusiva
Este artigo define zona econômica exclusiva como uma zona situada além do mar territorial e a este adjacente, sujeita ao regime jurídico específico estabelecido na presente Parte, segundo o qual os direitos e a jurisdição do Estado costeiro e os direitos e liberdades dos demais Estados são regidos pelas disposições pertinentes da presente Convenção.

Artigo 57
Largura da zona econômica exclusiva
Este artigo define a largura da zona econômica exclusiva da seguinte forma: “A zona econômica exclusiva não se estenderá além de 200 milhas marítimas das linhas de base a partir das quais se mede a largura do mar territorial.”

Artigo 58
Direitos e deveres de outros Estados na zona econômica exclusiva
Na zona econômica exclusiva, todos os Estados, quer costeiros quer sem litoral, gozam, nos termos das disposições da presente Convenção, das liberdades de navegação e sobrevôo e de colocação de cabos e dutos submarinos, a que se refere o artigo 87, bem como de outros usos do mar internacionalmente lícitos, relacionados com as referidas liberdades, tais como os ligados à operação de navios, aeronaves, cabos e dutos submarinos e compatíveis com as demais disposições da presente Convenção.”


Parte VII – Alto-Mar
Seção 1 – Disposições Gerais – Artigo 86
Este artigo define Alto-mar como “todas as partes do mar não incluídas na zona econômica exclusiva, no mar territorial ou nas águas interiores de um Estado, nem nas águas arquipelágicas de um Estado arquipélago.”

Artigo 89
“Nenhum Estado pode legitimamente pretender submeter qualquer parte do alto-mar à sua soberania.”

Artigo 110
Direito de Visita
Segundo este artigo, um navio em alto-mar sem imunidade (o que era o caso do navio Turco, uma vez que não era nem navio de guerra e nem navio em serviço oficial não comercial) só poderia ser interceptado para visita e inspeção caso houvesse razões suficientes para se suspeitar que:
  • a) o navio se dedica à pirataria;
  • b) o navio se dedica ao tráfico de escravos;
  • c) o navio é utilizado para efetuar transmissões não autorizadas e o Estado de bandeira do navio de guerra tem jurisdição nos termos do artigo 109 (que versa sobre transmissões não autorizadas a partir do alto-mar)
  • d) o navio não tem nacionalidade; ou
  • e) o navio tem, na realidade, a mesma nacionalidade que o navio de guerra, embora arvore uma bandeira estrangeira ou se recuse a içar a sua bandeira.
Esse mesmo artigo também diz o seguinte: “ 2. Nos casos previstos no parágrafo primeiro, o navio de guerra pode proceder à verificação dos documentos que autorizem o uso da bandeira. Para isso, pode enviar uma embarcação ao navio suspeito, sob o comando de um oficial. Se após a verificação dos documentos, as suspeitas persistem, pode proceder a bordo do navio a um exame ulterior, que deverá ser efetuado com toda a consideração possível.”

Artigo 111
Direito de Perseguição
Este artigo diz que:
“1. A perseguição de um navio estrangeiro pode ser empreendida quando as autoridades competentes do Estado costeiro tiverem motivos fundados para acreditar que o navio infringiu suas leis e regulamentos. A perseguição deve iniciar-se quando o navio estrangeiro ou uma das suas embarcações se encontrar nas águas interiores, nas águas arquipelágicas, no mar territorial ou na zona contígua do Estado perseguidor, e só pode continuar fora do mar territorial ou da zona contígua se a perseguição tiver sido interrompida. (...) Se o navio se encontrar na zona contígua, como definida no artigo 33, a perseguição só pode ser iniciada se tiver havido violação dos direitos para cuja proteção a referida zona foi criada.”

Como se vê, os conceitos de mar territorial, zona contígua, zona de exclusividade econômica e alto-mar são juridicamente dependentes da idéia de soberania do Estado costeiro que, então, exerceria jurisprudência sobre essas áreas. Porém, o mar territorial da faixa de Gaza não existe como entidade jurídica uma vez que o território de Gaza não está legalmente sob a jurisdição de nenhum Estado soberano. Juridicamente, esse pedaço de mar é considerado como uma área fora da jurisdição de qualquer Estado que, para efeitos práticos, funciona como se fosse área de alto-mar.

Dessa forma, mesmo que o navio estivesse a uma distância do litoral da faixa de Gaza que pudesse ser caracterizada como mar territorial (12 milhas marítimas) ou zona contígua (24 milhas marítimas), onde permite-se a perseguição e a inspeção, mesmo que o navio estivesse carregando armamentos, conforme alegam os Israelenses, Israel não teria o direito de interceptar essa embarcação por não poder ser considerado como Estado costeiro com jurisprudência sobre a área em questão. Conclusão: O Mavi Marmara nunca adentrou a zona contígua muito menos o que Israel interpretou ser seu mar territorial, portanto Israel não pode alegar que foi invadido ou que adentraram seu território ilegalmente. Israel violou as regras internacionais quando assumiu soberania de uma área que não lhe pertence legalmente reivindicando os direitos advindos dessa condição. Ao se recusarem a obedecer as ordens das forças Israelenses, os tripulantes do Mavi Marmara não cometeram crime algum que justificasse a escalada da violência por parte de Israel.

Mesmo se assumíssemos que Israel pudesse exercer os direitos de Estado costeiro segundo as definições da Convenção da Jamaica, ainda assim Israel teria violado o direito internacional pois, de acordo com a segunda parte do artigo 110 acima mencionado, a violência empregada não se justificaria nem se o navio estivesse dentro da zona contígua e fosse suspeito de pirataria.

O navio turco estava fundeado a aproximadamente 40 milhas da costa de Gaza, ou seja, completamente fora dos limites de mar territorial e de zona contígua, quando foi forçosamente perseguido e interceptado pelos comandos de operações especiais das forças Israelenses. Como já foi visto a perseguição só pode ser iniciada dentro da zona contígua ou do mar territorial. Conclusão: Caso Israel tivesse direitos de Estado costeiro, Israel teria violado as regras internacionais ao perseguir uma embarcação dentro da zona Econômica Exclusiva e ao abordar essa embarcação de maneira totalmente inapropriada.