terça-feira, 8 de junho de 2010

Resposta a Charles Krauthammer

Como a alma da propaganda é a repetição, o Globo de hoje, publica na seção de opinião, página 7 do caderno principal, um artigo de Charles Krauthammer, jornalista do jornal americano The Washington Post. O artigo já em seu título “Os judeus são o problema” lança a velha carta do antissemitismo. É muito curioso notar como que no discurso público americano os argumentos utilizados nas reivindicações de negros que, de alguma forma, acusem a sociedade americana de racista são instantaneamente rotulados e desqualificados sob o título de the race card (a carta da raça, que tem mais um sentido retórico de a desculpa da raça). Mas ninguém é acusado de jogar a carta do antissemitismo quando, para defender as políticas fundamentalistas do Likud, acusam seus opositores de odiarem todos os judeus.

É isso que tenta fazer Charles Krauthammer em seu artigo. Quando escreve “A Turquia denuncia sua ilegalidade, desumanidade, barbaridade etc” tenta desmoralizar as reivindicações turcas como se fossem improcedentes e absurdas. O uso do eco e do etcetera como ferramentas de discurso conferem ao texto um tom de extrema arrogância pois implica a existência de outras acusações que de tão previsíveis não merecem nem ser mencionadas. Em vez de se preocupar em construir argumentos jurídicos decentes para defender Israel, tenta desqualificar todos os que se opõem a seu ponto de vista simplesmente chamando-os de idiotas úteis, simpatizantes do terror, indiferentes europeus etc. Viu o que o etcetera fez? Desqualificou o argumento como repetitivo e previsível. Entretanto, parece que alguns argumentos são mais desqualifiçáveis que outros. Não satisfeito, levanta suspeitas sobre a idoneidade da mediação da comunidade internacional, e em plena globalização, tenta ofender os países não alinhados com o já gasto, ultrapassado e pejorativo conceito de terceiro mundo.

O argumento de Krauthammer, se é que esse tipo de estratégia pode se chamar argumento, começa citando Leslie Gelb que acredita que “o bloqueio (a Gaza) não só é perfeitamente racional como legal. Gaza, sob o Hamas, é um inimigo declarado de Israel – declaração apoiada em mais de 4 mil foguetes disparados contra território Israelense”. Veremos mais adiante que tal afirmação não se sustentaria em nenhum tribunal decente do mundo.

O segundo pilar de seu argumento é uma comparação que de tão absurda só pode ter como intenção legitimar algo ilegitimável. Escreve ele: “Na Segunda Guerra Mundial, os EUA, com legalidade total, bloquearam Alemanha e Japão”. Acredite se quiser, mas a última vez que o Congresso dos Estados Unidos declarou guerra oficialmente foi durante a segunda Guerra Mundial. Dessa forma, EUA, Alemanha e Japão, todos Estados reconhecidos, não só se constituíam em sujeitos de direito internacional mas também eram, declaradamente, Estados beligerantes, o que os coloca sob um ordenamento jurídico completamente diferente daquele que rege o que aconteceu na semana passada no contexto do conflito entre Israel e Palestina. A Palestina não é reconhecida como Estado e o Hamas não é reconhecido como o governo a exercer soberania sobre o território palestino mesmo tendo sido vitorioso nas eleições de 2006. Consequentemente, nem o Hamas nem a Palestina podem ser considerados sujeitos de direito internacional. A comparação, pelo menos do ponto de vista jurídico, chega a ser infantil de tão absurda, e só pode ter sido feita de má fé. Israel se nega a reconhecer o Hamas como governo legítimo, o que seria um passo importante no processo de reconhecimento do Estado Palestino, mas se dá o direito de declarar guerra a um grupo que não é sujeito de direito internacional. Isso exemplifica muito bem o posicionamento ambíguo de Israel que explora da maneira mais imoral possível o vácuo jurídico dentro do qual mantêm todos os palestinos. Porém, é de se esperar que a mente que transforma críticas às lideranças do Likud em expressões de antissemitismo irá julgar perfeitamente racional, como disse Gelb, o uso indiscriminado da violência contra todo o povo Palestino como retaliação ao Hamas. Como costumava dizer uma nobre senadora: generalizações perversas...

Segue o autor com suas comparações:“Em 1962, durante a crise dos mísseis, em Cuba, os EUA bloquearam a ilha. (...) Ainda assim Israel é acusado de crime internacional por fazer exatamente o que John Kennedy fez”. E é aqui que o argumento toma proporções de delírio. O bloqueio à Cuba vem sendo condenado quase que anualmente pela comunidade internacional. Em 2005, a Assembléia Geral das Nações Unidas condenou o bloqueio à Cuba pela décima quarta vez! Apenas três países votaram contra a resolução. Estados Unidos, Israel e as ilhas Marshall! Em 2006, novamente, a mesma Assembléia Geral aprovou resolução de mesmo conteúdo por 183 votos a favor, 4 contra e uma abstenção. Dessa vez a nação de Palau se juntou aos Estados Unidos, Israel e Ilhas Marshall. Em 2008, a décima sexta resolução da Assembléia Geral da ONU condenando o bloqueio dos Estados Unidos à Cuba foi aprovada por ampla maioria. Votaram contra Estados Unidos, Israel e Palau. Até o Papa já condenou o bloqueio americano à Cuba quando esteve na ilha em 1977 e 1998. É claro que as votações na Assembléia Geral são simbólicas já que para ser implementada qualquer resolução deve ser aprovada pelo Conselho de Segurança onde os Estados Unidos tem poder de veto. O fato do poder de veto dos Estados Unidos no Conselho de Segurança haver perpetuado uma prática considerada ilegal tão ostensivamente por toda a comunidade internacional não pode ser usado como argumento a fim de conferir a Israel o direito de violar as normas internacionais da mesma maneira. Por outro lado, se os Estados Unidos podem por que qualquer outro país do mundo não poderia? Qual é a fonte desses direitos que parecem ser reivindicáveis somente por Israel e Estados Unidos? Direito adquirido legítimo vem do costume internacional ou de tratados. Os fundamentalistas que me desculpem mas o antigo testamento não é, nem nunca será, fonte de direito internacional.

Outro detalhe jurídico é que a Convenção de Montego Bay concluída em 10 de dezembro de 1982, que é a referência jurídica para o incidente ocorrido entre os comandos Israelenses e o navio Mavi Marmara, só entrou em vigor como prática e costume internacional em 16 de Novembro de 1994 depois de 12 meses da data de depósito do sexagésimo instrumento de ratificação ou de adesão. Ou seja, em 1962, o ordenamento jurídico que existe hoje não existia. O que não significa dizer que Kennedy não tenha violado normas de direito internacional ao impor o bloqueio à Cuba. A Conferência Naval de Londres de 1909, um dos Tratados mais antigos versando sobre as regras de engajamento militar no mar, define bloqueios como atos de guerra, ou seja, só seriam lícitos e regulamentados entre Estados declaradamente beligerantes. Diante da inexistência de uma declaração de guerra oficial entre Cuba e Estados Unidos e entre Israel e o Hamas/Palestina, juridicamente não existe conflito armado. Por conseguinte, tanto o bloqueio à Cuba quanto o bloqueio à Gaza, são considerados pelo Direito Internacional como um ato de guerra econômica e, devido à inexistência de norma internacional que o justifique em tempos de paz, podem ser enquadrados como genocídio, que, entre outros, é definido pela Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio como “submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial.”

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