segunda-feira, 7 de junho de 2010

Uma questão de honra


Em ação quase suicida, moradores de Jabaliyah na Palestina se rebelam e matam uma dúzia de soldados Israelenses - apesar de rapidamente sufocado, levante é festejado como grande vitória pelos palestinos.
Desde 1967, aproximadamente 711.000 palestinos fugiram ou tiveram que abandonar as áreas onde viviam que ficaram sob controle do exército Israelense. Desde então os palestinos que permaneceram em seu território trataram de organizar a sua resistência. O resultado foi a criação do Hamas. O Hamas, havia meses, vinha infiltrando armas na Faixa de Gaza. Em 9 de Dezembro de 1987, finalmente, numa ação surpreendente e quase suicida, eles pela primeira vez dispararam contra os israelenses.

Evidentemente, a resistência não pode visar a libertação total da Palestina ou a destruição do aparato Israelense local, infinitamente maior e melhor aparelhado que a clandestina organização Palestina. Com essas ações, além de talvez adiar um destino que parece irreversível, o Hamas pretende pavimentar um final digno para os Palestinos da Faixa de Gaza, pontuado por orgulho e esperança. “A batalha na rua nos encorajou. Pela primeira vez desde a ocupação vimos soldados Israelenses colados às paredes, engatinhando no chão, correndo para se cobrir, hesitando antes de dar um passo, com medo de ser atingido por uma bala palestina. Os gritos dos feridos nos deram alegrias e aumentaram nossa sede de batalha”, escreveu numa carta Khaled Meshaal, integrante do grupo.

Os líderes militares Israelenses parecem estar subestimando a cólera que toma conta dos Palestinos, por todas as atrocidades contra eles cometidas, e que incita a resistência contra os Israelenses. Nos últimos anos cantos como:
“Palestina é a nossa casa
Nós nascemos aqui
Nós vivemos aqui
Nós amamos aqui
Não odiamos ninguém, mas desprezamos a injustiça
Na paz acreditamos, pela liberdade nós lutamos
Nós temos o direito de viver em paz em nossa Palestina. Por isso existe Intifada."

são entoados na Faixa de Gaza. Por tudo isso dificilmente Shimon Peres conseguiria entregar sua lição de casa na data pretendida. E a punição de Yitzhak Shamir, um dos arquitetos da solução final, não deve ser caracterizada pela clemência.

Esse texto, na verdade foi extraído do website Na História de VEJA.com, que segundo a própria revista “faz o leitor viajar no tempo: os fatos que marcaram o passado são contados por uma edição completa da revista, com os mesmos critérios editoriais dos dias atuais. Cada número busca reconstituir um exemplar de VEJA como se a revista existisse antes de 1968, ano em que o primeiro exemplar da publicação chegou às bancas.”

O conteúdo original, é claro, não se refere à intifada mas sim ao levante do Gueto de Varsóvia e pode ser encontrado na edição simulada de Fevereiro de 1943 do referido site.

A desconstrução do texto de Veja fez-se com o intuito de expor as graves semelhanças entre o levante do gueto de Varsóvia e o levante palestino contra a ocupação Israelense. Apesar das enormes semelhanças as escolhas das pessoas envolvidas nos dois conflitos são comumente compreendidas pelo discurso da grande mídia sob pontos de vistas diametralmente opostos. As posições de Veja ilustram bem esse paradoxo e comprovam que esse tipo de recurso é muito usado na grande mídia com propósitos um pouco menos nobres. Ao invés de tentar elucidar assuntos complexos, esse tipo de estratégia de comunicação é usada para simplificar, confundir e perpetuar uma ignorância conveniente que só leva à manutenção do status quo e à legitimação de mais violência.

O Globo de 5 de Junho de 2010 carrega um bom exemplo dessa estratégia. Na página 25 do caderno O Mundo dedicada à crise criada pelo ataque de Israel ao navio turco Mavi Marmara que carregava ajuda humanitária para a Faixa de Gaza lê-se na manchete: “Turquia se afasta de Israel e apoia o Hamas”. Logo abaixo, a foto principal da página mostra um homem barbudo de cenho franzido carregando um rifle com uma bandeira Turca ao fundo. Conclusão imediata: o homem seria turco e violento, o que nos dias de hoje parece ser mais do que suficiente para caracterizar alguém como terrorista.

Porém, o leitor atento continuaria a ler a legenda da imagem que dizia: “Após as orações de sexta-feira, protestos varreram o mundo islâmico: em Ayin el-Hilweh, no sul do Líbano, refugiado Palestino agita um rifle em frente a bandeira turca.” No Líbano? A foto descrita acima ilustra a reportagem de Renata Malkes que começa da seguinte maneira: “O governo da Turquia decidiu reduzir ao mínimo todos os acordos de cooperação econômica e militar com Israel.” Mais adiante Renata publica declaração do Primeiro Ministro turco Erdogan afirmando não achar que o Hamas seja uma organização terrorista. Declaração essa que recebe destaque no canto superior esquerdo da página. Todos os elementos estão aí juntos contando uma estória subliminar que diz: a Turquia é um país violento, islâmico que não merece a confiança do mundo e é aliado do Hamas e do Iran. Em momento algum menciona-se que até antes do ataque de Israel, a Turquia se constituia em um dos maiores aliados de Israel no Oriente Médio; que a Turquia, apesar da grande maioria da sua população ser muçulmana, se constitui em um Estado laico – bem diferente de Israel e do Iran que são Estados regidos pelos dogmas de suas respectivas religiões; ou que a Turquia exerce, legitimamente, sua soberania de maneira independente nos dando um grande exemplo desse posicionamento quando impediu que os Estados Unidos usassem as bases militares turcas para invadir o Iraque. É claro que essa campanha contra a Turquia tem a ver com a intermediação, fundamental, do primeiro ministro turco nas recentes negociações com o Iran. O Ocidente civilizado está retaliando com requintes de imoralidade.

Bom, sujada a barra da Turquia o discurso volta-se aos ativistas. A tarefa é a mesma. Caracterizá-los como terroristas cruéis e criminosos. Logo abaixo da legenda da foto principal, corroborando o direcionamento do discurso sendo até então empregado, uma segunda manchete afirma: “Ativistas rejeitam acordo e são cercados. Navio irlandês é interceptado por Marinha israelense a poucos quilômetros de Gaza” As duas fotos que ilustram a matéria de Daniela Kresch mostram forças policiais reprimindo os violentos manifestantes anti-Israel na Cisjordânia e em Amã. A frase é perfeita. Quando eu digo que ativistas não aceitam o acordo eu digo que Israel tentou negociar e que a intransigência e o radicalismo dos ativistas deu motivos a Israel para usar a força sem qualquer consideração sobre os aspectos jurídicos que envolvem o caso. A verdade é que não houve acordo porque, simplesmente, ninguém se encontrava dentro de território Israelense, e, que, por isso não tinham que ser obrigados a reconhecer o poder de Israel naquelas águas.

Mas Daniela não para por aí. Publica uma declaração do ministro das Relações Exteriores de Israel, Avigdor Liebermann que afirmou ao canal 1 da TV local: “Vamos bloquear esse navio e qualquer outro que tente desafiar a soberania israelense. Não há nenhuma chance que o Rachel Corrie chegue à costa de Gaza.” Soberania? Que soberania? Renata talvez não saiba (o que depõem gravemente contra ela no quesito seriedade e isenção) mas a Faixa de gaza não é reconhecida como parte de Israel. Consequentemente, Israel não pode exercer jurisprudência sobre o mar territorial da faixa de Gaza. Por isso o acordo foi recusado. Porque Israel é que estava violando costume internacional ao tentar interceptar um navio em águas consideradas internacionais. Daniela não levanta essa questão em parte alguma de sua reportagem, apenas segue com a mentira que “Por volta das 20h, o barco alcançou a marca das 100 milhas da costa de Israel – ponto onde a marinha israelense interceptou o Mavi Marmara.” Costa de Israel? Como é que poucos quilômetros se transformaram em 100 milhas marítimas? Desde quando os territórios ocupados são reconhecidos internacionalmente como parte de Israel? E mesmo que fossem parte de Israel, a distância de 100 milhas é considerada zona econômica exclusiva onde, segundo a convenção de Montego Bay, não são reconhecidos direitos de visita nem de perseguição a embarcações.

Na página seguinte, O Globo continua firme em seu propósito. Publica uma entrevista com Elisabeth Roudinesco, uma historiadora e psicanalista francesa que chega a fazer declarações muito lúcidas e pertinentes. Ela aborda a complexidade da questão da identidade judaica, manifesta seu apoio à solução de dois Estados, critica o sistema político Israelense que acaba por favorecer a permanência das forças mais reacionárias do país no poder e o pior... diz que adora o Lula!!! Todos esses assuntos renderiam um debate importante porém foram completamente esvaziados pela edição da entrevista que descambou para uma discussão inócua sobre a condenação do uso da burca e do quipá em escolas públicas francesas. Armadilha da qual a historiadora saiu com muita desenvoltura e inteligência.

O título escolhido para a entrevista, “Ataque a barco estimula o antissemitismo”, apesar das aparências, não é uma citação da entrevistada. E mesmo que fosse, seria mesmo essa a idéia mais importante da entrevista? Ou seria a ponderação sobre todas as nuances que envolvem o complexo universo da identidade judaica? Por que não destacou-se a frase “A política de Israel tem sido catastrófica” ou “o Estado (judeu) é uma coisa, os judeus são outra”? O que me leva de novo ao velho mantra e à distinção feita pela historiadora. Nem todos os judeus são israelenses e nem todo Israelense apoia o Likud. Então por que as críticas à políticas do Likud deveriam ser caracterizadas como antissemitismo? Fica claro que a associação retórica simplista foi uma tentativa de O Globo e não de sua entrevistada.

Ao ler a entrevista entende-se que Elisabeth Roudinesco, na verdade, diz o seguinte: ”Tudo isso é catastrófico para os judeus – pois estimula o antissemitismo – e também para todo o mundo.” O tudo na frase não se refere ao ataque ao barco como a editoria do jornal tenta transparecer pelo título ardilosamente disfarçado de citação, mas é uma crítica muito mais profunda às escolhas dos líderes nacionalistas do Likud que só contribuem para a radicalização e polarização do processo.

A grande maioria dos partidários do Likud apoia um movimento pela libertação de Yigal Amir, condenado à prisão perpétua pelo assassinato do então primeiro ministro Yitzhak Rabin que, em 1994, ganhou o prêmio Nobel da Paz junto com Yasser Arafat e Shimon Peres por conta dos acordos de paz de Oslo. Yigal Amir é visto como um herói por essas pessoas que são da opinião de que a política de Yitzhak Rabin colocava em risco a vida de vários Israelenses. Assim, não só justificam o seu assassinato como mostram que estão convencidos que não existe a possibilidade de um diálogo ou coexistência, o que os torna culpados do mesmo crime que acusam os integrantes do Hamas, ou seja, não aceitar a existência do Estado vizinho.

Quando o Hamas foi legitimamente eleito em 2006 Demétrio Magnoli defendeu em um editorial de O Globo o seguinte argumento: as nações civilizadas (i.e. poderes ocidentais) não devem permitir que um grupo que não acredita em valores democráticos (i.e. a existência de Israel) chegue ao poder mesmo que por vias democráticas. Agora por que esse mesmo argumento não é usado para impedir que líderes do Likud assumam a liderança de Israel já que seus eleitores consideram aceitável que se assassine um primeiro ministro que busque por uma conciliação com os Palestinos? E aí eu me lembro de quando perguntávamos como é que os alemães permitiram que as coisas chegassem àquele ponto.

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