quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Considerações sobre a violência do Rio de Janeiro – por João Braga Arêas

Impossível não falar da violência do Rio de Janeiro e dos presentes acontecimentos. A grande mídia celebra as cenas de combate, insiste que a população, incluindo moradores das regiões de conflito, apóia os policiais. A explicação geral é: os “bandidos” reagem às UPPs, provocando incêndios e arrastões. Agora, a polícia, junto com o exército, vai dar uma solução para os problemas da violência. Problema este que é de responsabilidade dos próprios moradores de favelas. São os pobres que acabam com a tranqüilidade da sociedade. Daí o governador Cabral explicitar seu entendimento: “útero de mulher pobre é fábrica de bandidos”. E o comandante do Estado Maior da Polícia Militar, coronel Álvaro Garcia afirmar: “esta região [Vila Cruzeiro] sempre trouxe transtorno para cidade, e agora chegamos para resolver.”
(O Globo, 26/11/2011, caderno especial, p.2)


Bombardeados por esse tipo de pensamento – que criminaliza a pobreza, que vê os miseráveis culpados por sua própria miséria – e por imagens espetaculares de violência que geram pânico na classe média, é compreensível que muitas pessoas, incluindo parte dos mais pobres,apóiem e respaldem as ações de repressão. A classe média em especial não esconde sua alegria ao ver tanques de guerra se dirigindo aos morros.

Diante do desconforto de ouvir diariamente, em diversos ambientes conversas do tipo “tem mais que matar mesmo esses bandidos”, escrevo essas linhas propondo questões não presentes no senso comum. Não tenho nenhuma pretensão de explicar ou apontar o caminho para solucionar o problema da violência do Rio de Janeiro.

Vale discutir se o “bang bang” vai mesmo deixar a cidade “pacificada”. Se a repressão policial resolvesse a questão, viveríamos no melhor dos mundos. A polícia do Rio de Janeiro é a que mais mata no mundo. Uso dados de um artigo de Arbex Jr, da Caros Amigos: a taxa homicídios/ano do Rio de Janeiro é de 2.273. O estado se aproxima de todo o Irã (um país inteiro!). Aqui, morrem 34 vezes mais que a Irlanda, 22 vezes mais que o Líbano, 11 vezes mais que Israel, 54 vezes mais que os Emirados Árabes, 5 vezes mais que a Síria... Citei países que tem conflitos históricos, como Israel, ou países de “terceiro mundo”. Não comparei com uma Noruega (cuja taxa de homicídios é 60 vezes menor). E repito: comparei o estado do Rio de Janeiro com países inteiros!!! Nossa polícia mata muito (e também é uma das polícias que mais morre no mundo)!!! Portanto, mortes, coerção e “caverões” não estão faltando. Poderíamos citar inúmeros exemplos nesse sentido. Recordo de mais dois: os documentaristas de “Falcão – meninos do tráfico” entrevistaram oito menores ligados ao “movimento” quando o filme foi lançado, apenas um ainda estava vivo... Já em “Notícias de uma guerra particular”, policiais do BOPE admitem que matavam toda noite um “traficante” da Mineira e não adiantava nada...

É preciso lembrar sempre: quando ouvimos falar de mortes nas favelas, muitas vezes pessoas que supostamente morreram em tiroteios na verdade foram executadas. Isso foi comprovado nas incursões no Complexo do Alemão, em 2007, no contexto da “pacificação” para os Jogos Panamericanos. E muitos desses executados não tinham ligação com o tráfico. Convido vocês a conhecer a luta das mulheres da “Rede Contra a Violência”, de mães que perderam seus filhos pela repressão policial. Três dias atrás, conheci Márcia Jacintho que, com muita coragem, conseguiu provar que seu filho, sem vínculos com o crime, fora executado por policiais.

Na operação desta quarta-feira (24/11/2010) na Vila Cruzeiro, tão celebrada pela mídia, vale destacar o perfil de alguns dos mortos, segundo o registro de uma jornalista do Estado de São Paulo: vítimas - uma adolescente de 14 anos, atingida com uniforme escolar quando voltava para casa; um senhor de 60 anos, uma mulher de 43 anos e um homem de 29 anos que chegou morto ao hospital com claros sinais de execução. Feridos - 11 pessoas, entre elas outra estudante uniformizada, dois idosos de 68 e 81 anos, três mulheres entre 22 e 28 anos, dois homens de 40 anos, um cabo da PM e apenas dois homens entre 26 e 32 anos. O padrão de matar pobres, não raro sem ligações com tráfico, se mantém.

Esse tópico de cima nos leva a refletir sobre outro. A população das favelas está apoiando a repressão? A televisão nos diz isso toda hora! E entrevista policiais que dizem isso todo instante! Mas e as entrevistas com moradores? Nada! Bom, se você quer furar esse cerco midiático, acesse http://www.youtube.com/watch?v=Z3vteAmy5qs. Aqui, você escutará uma entrevista feita por uma rádio comunitária do Morro Santa Marta com um morador do Complexo do Alemão. Não estranhe as interrupções pelas várias rajadas de tiros.... Adianto que você não ouvirá um entusiasta das ações do BOPE...

A repressão violenta se concentra sobre os mais pobres. Como declarou o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ), são “homens de preto” que matam pobres, geralmente “pretos”. E vale lembrar: o próprio policial também é oriundo de famílias mais pobres. Um policial no Rio de Janeiro ganha muito pouco (tem o segundo pior salário do Brasil).

Um dos simplismos das versões midiáticas tem sido colocar “polícia” versus “bandidos”. Ora, por várias circunstâncias, como lembra Luiz Carlos Soares, não há nenhuma modalidade importante de ação criminal no Rio de que segmentos policiais corruptos estejam ausentes. Não vi isso destacado pela imprensa, que nos mostra os policiais como mocinhos super-heróis que irão nos salvar... Muito menos há reflexão para as causas dessa corrupção policial.

Já que falamos da pobreza dos noticiários, que apenas querem nos levar a ter medo e apoiar a ação da polícia e do Exército, vale destacar: por que esses “arrastões” e incêndios de veículos aconteceram? Ninguém sério pode acreditar que foi uma resposta às UPPs ou que o objetivo era causar danos políticos ao governador Cabral. Se fosse este último caso, por que esperar o fim das eleições para fazer as ações? Supondo que os varejistas do tráfico não sejam tão estúpidos, por que fizeram essas ações? Para chamar a repressão contra si e causar a própria morte??? Não tenho resposta para essas perguntas. Mas ressalto a necessidade de se ter senso crítico à versão dada pela grande mídia e pelas autoridades. O fato é: não sabemos o porquê disso tudo...

Acima, falei em varejistas do tráfico. Sim, pois os verdadeiros traficantes de armas e de drogas não moram na Vila Cruzeiro... O tráfico internacional de drogas movimenta cerca de 1 trilhão de dólares. Nas imagens repetidas pela TV Globo, onde homens corriam em uma estrada de terra para chegar em outro morro, víamos pessoas sem camisa... Com certeza, não são esses que mexem com os milhões e bilhões de dólares. E usam armas russas e israelenses: duvido muito que eles falem russo e hebraico para comprar esses armamentos... Logo: essas pessoas não são nem de longe as principais articuladoras do tráfico de drogas! Como se eu fosse ao McDonald’s e considerasse o atendente que me dá os big macs como “o” responsável pela lanchonete... Ora, “o” responsável pelo McDonald’s sequer está no local... O mesmo para as favelas: ali só se encontram varejistas, não os verdadeiros chefões do tráfico... Estes últimos moram de frente para a praia, em belos edifícios...

Em tempo: por que tanta hipocrisia com relação à maconha? Por que não legalizá-la se tantos a usam? Ontem (27/11), fui ao show na Lapa da Céu e do Otto. A minha volta, vários jovens fumando maconha. A verdade é que em todos os círculos de amizade, conheço pessoas que fumam ou já fumaram regularmente, incluindo: amigos da rua, da escola, da faculdade, do trabalho e da família! Por que não permitir eles plantarem em casa? Ora, porque assim, tem-se menos dinheiro... Parece que não se quer exatamente o fim do tráfico de drogas...

Por fim: de onde surgem esses “perigosos bandidos”? Isso a mídia não explica, né? Eles moram, por acaso, nas favelas e nas regiões mais pobres? Acredito ser fundamental considerar as oportunidades de cada pessoa e a classe social a qual pertencem. Eu estudei em uma escola de classe média alta do RJ. Meus amigos viraram médicos, economistas, advogados, professores... Ninguém ali cogitou virar “fogueteiro” ou chefe de boca de fumo... É preciso considerar o abismo que existe entre ricos e pobres para entender a violência. Resolver esse abismo – que envolve transformações estruturais em nossa sociedade – é a verdadeira questão. Repressão policial não é a solução. Concordo com MC Leonardo: ao invés de UPPs, que as favelas sejam invadidas com a Universidade Federal da Rocinha, com a Faculdade Estadual do Borel...

Em tempo: os verdadeiros bandidos não frequentam as seções policiais dos jornais. Mas se desejar ver os reais roubos, verifique o quanto os banqueiros receberam de “ajuda financeira” dos leais governos de vários países do mundo, a partir da crise econômica de 2008: cifras em torno de trilhões... Veja o filme de Michael Moore, “Capitalismo, uma história de amor”, que conta um pouco disto. Então, prefiro mudar a frase do governador: “o útero das classes dominantes é uma fábrica de bandidos”. Ou como lembra Lênin: “não há diferenças entre ladrões de banco e donos de banco, ambos são igualmente ladrões.”

João Braga Arêas é Doutorando de história da UFF e Professor do Colégio Pedro II

sábado, 30 de outubro de 2010

Extra!Extra! Veja desvenda o mistério do século! Obama é o novo messias!

Obama nas alturas!

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O telhado de vidro de civilidade da retórica tucana

Espontaneidade da militância tucana



domingo, 17 de outubro de 2010

Cronologia das denúncias advindas da operação Castelo de Areia.

Em 14 de janeiro de 2010, o STJ expediu liminar suspendendo as repercussões legais da operação Castelo de Areia da Polícia Federal alegando que aquela teria sido iniciada por denúncia anônima, o que seria inconstitucional. Dia 21 de Janeiro, a Folha publicou reportagem sobre o relatório publicando que o esquema da Camargo Côrrea para a obra da Usina de Tucuruí no Pará envolvia membros do PT e do PMDB. Dia 26 de janeiro o MP entrou com recurso.
O link abaixo é relativo à matéria da Folha mencionada acima
http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u683066.shtml

Em Maio desse ano, entretanto, o conteúdo do relatório parece ter vazado para a imprensa de uma maneira “mais ostensiva.” Veja e Época publicam matérias mostrando que o esquema Camargo Corrêa também teria desdobramentos envolvendo o alto tucanato paulista. Mas a Veja direciona sua reportagem destacando contradições entre depoimentos de Paulo Vieira e o conteúdo dos relatórios da PF no sentido de enquadrá-lo como boi de piranha do esquema ao mesmo tempo que levanta a tese que o importante não é só punir os culpados mas neutralizar o aparecimento desses potenciais criadores de dossiês que costumam acontecer em anos eleitorais.
http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/homem-bomba-tucano-aloysio-nunes

A revista Época, publicada pela Editora Globo, em linguagem um pouco mais assertiva que a usada pela Veja, identifica o metrô e o rodoanel como as obras paulistas que, segundo os relatórios da PF, estariam envolvidas no esquema Camargo Corrêa envolvendo membros do tucanato daquele Estado. No que diz respeito ao metrô, diz que as supeitas da PF levariam ao deputado tucano Arnaldo Madeira, ex-chefe da Casa Civil durante a gestão de Geraldo Alckmin, e a Luiz Carlos Frayze David, que fora presidente do metrô paulista de 2003 a 2007. A reportagem tenta dissociar o nome de Madeira do escândalo mas atropela cachorro morto quando se trata de David, uma vez que ele foi afastado de seu cargo por conta do acidente nas obras do metrô de Pinheiros pelo qual responde a processo indenizatório. Na reportagem de Época encontra-se uma frase no mínimo curiosa: “As obras do metrô e do Rodoanel são a vacina de Serra contra o PAC de Dilma”. Porém o rodoanel recebe verbas federais porque faz pate do PAC! Abaixo segue um link do próprio O Globo Online sobre o assunto
http://oglobo.globo.com/sp/mat/2007/01/27/287584946.asp

No que diz respeito ao rodoanel o nome da vez é o de Paulo Vieira, conhecido também como Paulo Preto. Após dar um breve histórico de sua vida e mencionar sua ligação de amizade com Aloysio Nunes, a reportagem menciona os pagamentos mensais e a exoneração de seu cargo na Dersa logo após o término das obras do rodoanel no início de Abril desse ano sem que, no entanto, se verifique qualquer justificativa oficial para o seu afastamento registrada no Diário Oficial. Aloysio Nunes dá uma declaração curiosa. Diz que “o rodoanel teve um 'aditivo' de 5% de seu valor real, um recorde para os padrões do Brasil”. Paulo Vieira, por outro lado, diz que o rodoanel é a única obra do PAC onde não houve superfaturamento. A reportagem termina com ambos negando qualquer ligação com a empreiteira Camargo Corrêa e apontando que, esta, reclama de irregularidades na investigação da PF.

Vale destacar as escolhas semânticas e a forma distinta como a revista tratou a questão do “aditivo” de 5% do Aloysio elevando-o quase a herói nacional por ter prestado tamanha contribuição ao país no que diz respeito ao combate à corrupção e como tratou Israel Guerra, o pior lobbyista da História Moderna, que foi esquartejado em praça pública por uma denúncia de que teria pedido os mesmos 5% ao ex-presidiário Rubnei Quícoli no caso de sucesso de um, já recusado, pedido de financiamento junto ao BNDES pelo qual Quícoli já teria pago a 240 mil reais à ele. Por que Israel Guerra não mereceu ser laudeado por cobrar uma comissão de sucesso de apenas 5% da propina?

A Rede Globo descaradamente tentou esconder as ligações tucanas do esquema como prova a imagem de um de seus jornais, reproduzida no infográfico do portal G1 mostrado acima que explica a evolução da operação da PF. Abafa-se o caso e eis que Dilma no debate do dia 10 traz o nome de Paulo Vieira novamente à pauta. Serra questionado sobre o assunto diz que não o conhece num dia e, em menos de 48 horas, desmente a si mesmo. Tudo por causa de uma declaração em tom de ameaça por parte de Paulo Vieira durante entrevista concedida à Folha de São Paulo nos dias que se seguiram ao debate.

Um aspecto interessante sobre esta cronologia é a forma como a imprensa, que aparentemente já tinha acesso ao relatório da PF em Janeiro, quando saiu a matéria da Folha, denunciava os desdobramentos do esquema Camargo Corrêa como restritos à esferas do PT e do PMDB, porém, na segunda semana de Maio, parece que a imprensa adquire um relatório com conclusões muito diferentes daquelas divulgadas em Janeiro pela Folha. Paulo Vieira foi demitido de seu cargo dia 9 de Abril, oito dias depois da inauguração do trecho sul do rodoanel e exonerado oficialmente dia 21 de Abril sem justificativa oficial registrada no Diário Oficial. E na matéria da Veja do dia 13 de Maio se discorre sobre potenciais criadores de dossiês.

Segue link da matéria de capa da IstoÉ publicada dia 16 de Outubro de 2010
http://www.istoe.com.br/reportagens/106182_O+PODEROSO+PAULO+PRETO+PARTE+1?pathImagens=&path=&actualArea=internalPage

A matéria expõe outros detalhes interessantes desse caso: Aloysio Nunes, o senador mais votado em São Paulo e amigo próximo de Paulo Vieira, teria se retirado do estúdio onde se realizava o debate assim que Dilma mencionou o nome de Paulo Vieira. Mas tem uma pergunta que a revista não faz. Já que Paulo Vieira diz que não arrecadou contribuições em nome do partido e o alto tucanato acusa o sumiço de 4 milhões de reais de seu caixa, onde foi parar esse dinheiro?

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Miriam Leitão e a garupa tucana nos números da pobreza

Em sua coluna do dia 14 de Julho de 2010 entitulada Os pobres, Miriam Leitão defende a tese de que os “fatos mostram que há uma continuidade no processo de redução da pobreza brasileira nos últimos 17 anos”, e que o fenômeno não deveria ser atribuído a um governo apenas. No rodapé da coluna ela publica o gráfico abaixo e cita como fonte Ricardo Paes de Barros que, segundo nos diz em sua coluna, é considerado o maior especialista brasileiro em pobreza.

Vamos ao gráfico. É possível notar que houve um primeiro grande momento de queda que se deu no final do governo Itamar em função do Plano Real que Miriam atribui, acertadamente, à queda da inflação promovida pelo plano de estabilização econômica elaborado pela equipe de Fernando Henrique Cardoso quando este era Ministro da Fazenda de Itamar Franco. À partir desse ponto começa o truque. Miriam desenvolve sua tese a partir da premissa de que não haveria qualquer diferença entre o FHC Ministro e o FHC Príncipe assim como não há diferença entre as idéias do sociólogo e as do político:“Para que a conta fique correta, não se pode registrar a partir de 1995 mas de 1993 quando se pega o que havia antes do Plano Real.” Tudo bem.

Porém, a diferença entre o Ministro e o Príncipe ficará clara a partir da análise dos dados do gráfico que vamos fazer a seguir. Miriam, entretanto, continua em sua cruzada defendendo o seu Guia: “O percentual de pobres e de extremamente pobres sai de 47% e vai para 38,6%, e lá fica em torno desse número até o fim do governo Fernando Henrique. Em 2003 há uma pequena elevação para 39,4% e começa um novo período de queda, desta vez constante, até chegar a 25,3% em 2008.”

A análise e o discurso de Miriam tentam dar a impressão de que Fernando Henrique Cardoso depois de ter promovido significativa diminuição da pobreza enquanto Ministro da Fazenda de Itamar viabilizou um período de estabilidade e foi muito bem sucedido em impedir que o número de pobres voltasse a subir já que ela minimiza a pequena e insignificante elevação desse número ao final de seu segundo mandato e muito menos tece qualquer comentário que esclareça os motivos que levaram ao aumento mencionado. Miriam não poderia estar mais longe da verdade!

Não podemos nos esquecer de que estamos falando em valores percentuais e que esses são números relativos que não podem ser devidamente analisados sem que se leve em consideração a variação da grandeza com a qual eles se relacionam: no caso em questão, a população brasileira.

E é aí que a Leitão torce o rabo. Não dá para entender como que, mesmo amparada pelo maior especialista em pobreza do país, Miriam possa ter se esquecido de que, segundo números do IBGE, entre 1995 e 2002, a população brasileira cresceu 11.6%. Ora, não é necessário ser um doutor em economia para concluir o que acontece quando a população cresce 11.6% e o percentual dos pobres e extremamente pobres se mantêm praticamente inalterado... vai dois... noves fora... voilá! Houve, na verdade, um aumento real do número de pobres, o que coloca por terra a tese claramente tendenciosa da colunista sobre a continuidade dos esforços de redução da pobreza. Mas não para por aí não. Intrigado pelos números fiquei curioso em saber o impacto real desses percentuais e fui buscar no site do IBGE os números relativos ao crescimento da população. Sinceramente, fiquei estarrecido com o resultado quando coloquei lado a lado o crescimento da população brasileira com o número absoluto de habitantes vivendo na condição de pobreza em nosso país. Esses números foram facilmente conseguidos à partir de uma regra de três simples usando os dados demográficos do IBGE e as percentagens fornecidas pela senhora Leitão. Veja os resultados da pesquisa no gráfico abaixo:
47% de 149.2 milhões = 71.2 milhões;
38.6% de 155.7 milhões = 60.1 milhões;
38,3% de 171.6 milhões = 65.7 milhões;
39.4% de 176.8 milhões = 69.6 milhões;
25.3% de 189,6 milhões = 47.9 milhões;

Aquela “pequena elevação” do final do governo simplesmente contribuiu para trazer o número de pessoas vivendo em condição de pobreza de volta a patamares pré-plano Real. Ou seja, se Fernando Henrique, como Ministro idealizador do plano Real, tirou 11 milhões de pessoas da pobreza, como Príncipe fez o favor de retorná-las à sua antiga condição quase que integralmente. E sua serva, a senhora Leitão, auxiliada pelo maior especialista em pobreza do país usam e abusam da matemática para distorcer os fatos e convencer seus leitores de que não houve um hiato significativo entre os dois momentos de redução da pobreza por eles citados e que tanto os tucanos como os petistas devem ser parabenizados pelos seus esforços tão bem sucedidos nessa área. Isso é que eu chamo de garupa!

Então Miriam, para que a conta fique correta vamos combinar o seguinte: Fernando Henrique Cardoso tirou 71.2 - 60.1 = 11.1 milhões de brasileiros da miséria com o Plano Real. Depois durante os seus dois mandatos levou 69.6 - 60.1 = 9.5 milhões de brasileiros de volta à condição de pobreza. O que faz com que a contribuição do PSDB ao processo de redução da pobreza no Brasil fique em 11.1 - 9.5 = 1.6 milhões de brasileiros. Durante os 8 anos de governo Lula a população cresceu 10.1% entre 2003 e 2009 — os números de 2010 ainda não se encontram disponíveis — e 69.6 - 47.9 = 21.7 milhões de brasileiros deixaram de viver na condição de pobreza. Ao que parece não é a Dilma que sai por aí andando de garupa!

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Conversa com Jabor

Recebi ontem via e mail uma mensagem encaminhada como corrente que me motivou a escrever esse post. Era um comentário de uma repórter do Estadão sobre a censura desnecessária de um texto de Arnaldo Jabor datado de 2006. Seguem a íntegra do texto e minhas considerações sobre ele.


TSE retira comentário do Arnaldo Jabor do Site da CBN- Será que mesmo assim as pessoas votam nesta corja?

Leia o comentário de Dora Kramer, Estadão de Domingo:

A decisão do TSE que determinou a retirada do comentário de Arnaldo Jabor do site da CBN, a pedido do presidente Lula até pode ter amparo na legislação eleitoral, mas fere o preceito constitucional da liberdade de imprensa. Não deixem de ler e reler o texto abaixo e passem adiante!

A VERDADE ESTÁ NA CARA, MAS NÃO SE IMPÕE.
Arnaldo Jabor

O que foi que nos aconteceu? No Brasil, estamos diante de acontecimentos inexplicáveis, ou melhor, 'explicáveis' demais. Toda a verdade já foi descoberta, todos os crimes provados, todas as mentiras percebidas. Será mesmo? O que terá acontecido? Tudo já aconteceu e nada acontece. Os culpados estão catalogados, fichados, e nada rola. A verdade está na cara, mas a verdade não se impõe. Isto é uma situação inédita na História brasileira!!!!!!! Claro que a mentira sempre foi a base do sistema político, infiltrada no labirinto das oligarquias, mas nunca a verdade foi tão límpida à nossa frente e, no entanto, tão inútil, impotente, desfigurada!!!!!!!!


Concordo plenamente. Basta uma ida ao site do IBGE para se começar a entender quem está por trás desse processo de desfiguração da verdade

JABOR — Os fatos reais: com a eleição de Lula, uma quadrilha se enfiou no governo e desviou bilhões de dinheiro público para tomar o Estado e ficar no poder 20 anos!!!!

Pois é, vamos aos fatos...
“uma quadrilha se enfiou no governo”
Acho que a expressão “se enfiar” ocupa um espaço semântico que entra em conflito direto com o da idéia de ter sido eleito democraticamente. Esse discurso busca, com isso, sugerir que a chegada ao poder não teria se dado de maneira legítima o que o caracterizaria, no mínimo, como falso. Nunca como fato.

Quem desviou dinheiro público para comprar votos, tomar o Estado e permanecer no poder não foi o PT mas o senhor Fernando Henrique Cardoso. Quem queimou dinheiro público para manter as aparências de suas políticas econômicas e ser reeleito não foi o PT mas o senhor Fernando Henrique Cardoso.

Mesmo tendo sido eleito para administrar o Patrimônio público da melhor maneira possível, quem foi intencionalmente negligente e, inclusive, com a ajuda da mídia, promoveu uma campanha de desmoralização da capacidade administrativa do Estado de modo a desviar os lucros advindos da operação das empresas públicas estratégicas para os bolsos de alguns poucos grupos privados em detrimento dos benefícios que poderiam trazer para a grande maioria da população brasileira não foi o PT, mas sim o senhor Fernando Henrique Cardoso. Que saudade da quadrilha que, ao invés de assumir responsabilidade pela administração do patrimônio público e trabalhar para torná-la mais eficiente, preferia vendê-lo a preços muito abaixo de seu valor de mercado de modo a maximizar a rentabilidade do negócio para seus futuros compradores. Seria como contratar alguém para administrar sua empresa e depois de alguns meses essa pessoa, formada na Sorbonne e muita capacitada, chega para você e diz: Olha não vai dar para fazer o que você está me pagando para fazer e que eu disse que faria, mas tem um jeito da gente resolver esse problema. Que tal você vender sua empresa baratinho para atrair mais compradores? Você daria um bônus à esse gerente genial ou o demitiria e o substituiria por alguém com um pouco mais de compromisso com sua empresa? Pois é...

Passemos então ao fato sobre ”Ficar no poder 20 anos...“ Aliás, os tucanos tem se perpetuado no poder em São Paulo e isso nunca é visto como um fator de risco à democracia. Como é que isso pode ser considerado fato ou mesmo real? Fato é que Lula governou por 8 anos e ao invés de orquestrar um mensalão para mudar a Constituição no sentido de permitir à ele um terceiro mandato, prefere agir dentro da constitucionalidade e colocar sua energia em eleger o seu sucessor por que tem consciência de que os resultados de seu governo lhe rendem dividendos políticos muito mais vultosos e legítimos do que o risco de um tapetão ao estilo tucano renderia. O que a mídia conservadora tucana não entende é que Lula não precisa do tapetão que eles precisaram para se manter no poder. O tapetão só se faz necessário quando não há resultados, ou quando não se pode mais mascarar os resultados negativos das políticas implementadas.

Sempre me pergunto por que é que a nossa mídia não constrói o mesmo tipo de discurso dispensado à Lula quando analisa a situação da Colômbia, ou mesmo do Estado de São Paulo. Na Colômbia, mesmo depois de tentar um golpe para viabilizar seu terceiro mandato que acabou sendo considerado ilegal pela Corte Suprema daquele país, Uribe conseguiu eleger o seu sucessor. Mas a vitória do sucessor de Uribe é uma vitória da Liberdade e não uma ameaça à democracia. Da mesma forma, a eleição de membros do tucanato ao cargo de governador de São Paulo, que acontece sistematicamente desde 1995 quando Mario Covas foi eleito, também nunca é vista como ameaça à democracia, mas sim como a vitória de uma escolha inteligente, pragmática e de extremo bom senso dos paulistas. Então por que haveria de se acusar o PT de autoritarismo e caracterizá-lo como uma ameaça à democracia caso consigam eleger sucessor atrás de sucessor por falta de uma oposição que realmente se proponha a se comprometer com ideais dos quais o PT eventualmente tenha se desvinculado? Isso não significaria o fim da democracia, é apenas um reflexo da inabilidade dos demais partidos políticos em encontrar ressonância popular para as propostas que apresentam ou da incopetência dos setores mais conservadores da sociedade brasileira em se adaptar ao novo cenário político insistindo em manter o caráter feudal que sempre caracterizou sua forma de perceber o Brasil e a maneira como este se insere no mundo. Alternância de poder só é um predicado fundamental da democracia quando seus defensores não se encontram no poder. Fernando Henrique Cardoso certamente não acreditava em alternância do poder quando desviou todo aquele dinheiro para comprar os votos necessários à sua reeleição.

JABOR — Os culpados são todos conhecidos, tudo está decifrado, os cheques assinados, as contas no estrangeiro, os tapes, as provas irrefutáveis, mas o governo psicopata de Lula nega e ignora tudo !!!!! Questionado ou flagrado, o psicopata não se responsabiliza por suas ações. Sempre se acha inocente ou vítima do mundo, do qual tem de se vingar. O outro não existe para ele e não sente nem remorso nem vergonha do que faz!!!!! Mente compulsivamente, acreditando na própria mentira, para conseguir poder. Este governo é psicopata!!! Seus membros riem da verdade, viram-lhe as costas, passam-lhe a mão nas nádegas. A verdade se encolhe, humilhada, num canto.

E o pior é que o Lula, amparado em sua imagem de 'povo', consegue transformar a Razão em vilã, as provas contra ele em acusações 'falsas', sua condição de cúmplice e Comandante em 'vítima'!!!!! E a população ignorante engole tudo.. Como é possível isso?


Isso é o que gostariam de acreditar os meios de comunicação para o qual escreve o senhor Jabor. Corrupção não se manifesta somente nos crimes de desvio de dinheiro público escondido em cuecas, panetones e afins. A corrupção também se expressa na adoção de políticas públicas subservientes e dependentes que beneficiam uma parcela ínfima da população de um país negando à grande maioria de seu povo as condições mais básicas para o exercício da cidadania. A corrupção também se manifesta em políticas públicas que refletem uma total falta de sensibilidade quanto às prioridades de uma sociedade. Por que ninguém critica o “desvio” de tanto dinheiro público para a construção de estádios de futebol de última geração para a Copa do mundo? Precisamos muito mais de escolas e hospitais do que de arenas esportivas supermodernas e caras. Os governos deveriam propor que se construíssem esses novos estádios tendo em mente sua utilização posterior ao evento assim como Darci Ribeiro sugeriu que se fizesse com o projeto do Sambódromo: transformá-lo em salas de aula durante o resto do ano quando não fosse utilizado como a passarela do Samba. Isso seria uma forma criativa de amenizar esse gasto absurdo do governo muito bem visto pela mídia que veste a camisa verde amarela somente durante o seu delírio nacionalista bissexto: a Copa do Mundo.

A imagem de povo de Lula não é uma criação marketológica como o são o nacionalismo da Globo ou o novo nome do PFL de Botox — Democratas — que agoniza seus últimos suspiros de viabilidade política tentando enganar o povo com uma nova imagem que tem por objetivo distanciar o partido de seu passado como colaborador da ditadura. A imagem de povo do Lula foi consolidada por uma série de escolhas que surtiram efeitos, realmente, nunca antes vistos na história desse país. As nossas reservas internacionais representam hoje uma parcela maior do PIB do que nossa dívida externa bruta o que permitiu ao Brasil sair da condição paralisante de devedor e se tornar credor internacional. Nos áureos tempos de FHC, a dívida chegou a representar 41,8% do PIB quando o glorioso real atingiu sua maior desvalorização ao final de seu segundo mandato. Em 1997, depois de comprar os votos necessários para alterar a Constituição e permitir sua reeleição, FHC por razões meramente eleitoreiras e egoístas, implementou uma verdadeira liquidação de nossas reservas internacionais a fim de manter artificialmente a estabilidade da nova moeda.

Pois é, os tucanos paulistas, que se vangloriam de sua modernidade administrativa, fizeram, no final do século 20, o mesmo que fizeram seus antepassados com a política de valorização do café durante a República Velha lá no início do mesmo século. A única diferença é que durante os anos 20 queimava-se o café e em 97 queimou-se dólares. Demonstraram, contudo, o mesmo desrespeito ao patrimônio público que foi, e ao que parece, continuou sendo visto apenas como uma ferramenta de capitalização do patrimônio privado daqueles que herdaram o privilégio de gerenciar o patrimônio público. Comportando-se como piratas saqueadores não pensaram duas vezes diante da possibilidade de sacrificar o Tesouro em benefício próprio e de seus pares.

Mas moeda super desvalorizada não é problema por que todos os especialistas da grande mídia sempre afirmam que a desvalorização da moeda é, na verdade, uma coisa boa para a economia brasileira pois beneficiam o setor exportador historicamente consolidado como o motor da nossa economia. Então, se hoje você esperneia por causa dos 37% do PIB de carga tributária, que quando comparado com a carga tributária da grande maioria dos países desenvolvidos do mundo não representa uma percentagem tão absurda como tenta transparecer a grande mídia, pergunte-se por que você nunca se indignou com o fato de ter que pagar quase a metade da riqueza que o País produzia em serviços da dívida externa.

E é aí que entra o segundo grande legado de Lula. O fortalecimento do mercado interno e o impacto significativo que isso teve na redução da vulnerabilidade externa da nossa economia. Permitiu-nos usar mais da nossa riqueza em benefício próprio ao invés de encher o bolso dos especuladores financeiros internacionais de dinheiro fácil. Essa libertação permitiu um avanço ainda mais ousado e urgente de políticas como o PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento que o senador Sérgio Guerra do PSDB disse, em entrevista à Veja, ser desnecessário.

JABOR — Simples: o Judiciário paralítico entoca todos os crimes na Fortaleza da lentidão e da impunidade. Só daqui a dois anos serão julgados os indiciados - nos comunica o STF. Os delitos são esquecidos, empacotados, prescrevem. A Lei protege os crimes e regulamenta a própria desmoralização. Jornalistas e formadores de opinião sentem-se inúteis, pois a indignação ficou supérflua. O que dizemos não se escreve, o que escrevemos não se finca, tudo quebra diante do poder da mentira desse governo.

Coitados dos formadores de opinião! Quem está se fazendo de vítima do mundo agora é o nosso ilustre autor. É a maldição do espelho. Você só enxerga no outro aquilo que você é.

Esse argumento chega às margens do delírio... Um devaneio que parte da premissa, completamente falsa, de que os argumentos favoráveis ao governo encontram um espaço maior na mídia do que os contrários à ele. Como se o governo conseguisse atingir a população de maneira mais constante e regular do que a mídia que o ataca diariamente. Se o que vocês escrevem não se finca talvez as pessoas discordem de algumas dessas opiniões. Ou hipóteses, no caso de Ali Kamel. Mas admitir isso seria pedir demais aos donos da verdade.

Não foi um desses formadores de opinião que no exercício do legítimo direito de liberdade de expressão publicou matéria na Folha de São Paulo alertando Daniel Dantas sobre a operação da Polícia Federal que o investigava? Não foram os jornais que optaram por desviar a atenção do leitor para uma discussão inócua sobre a necessidade do uso de algemas ao invés de focar na abrangência do esquema de Dantas, que conseguiu dois habeas corpus em menos de 48 horas do ilustre Presidente do Supremo Gilmar Mendes? Onde está toda a indignação! Quem está protegendo quem? O que o nobre cineasta ainda não percebeu é que as pessoas estão reivindicando o direito de lembrar e esquecer que deixou de pertencer somente aos grandes conglomerados da comunicação. E isso eles não aceitam. Tanto que quando a Petrobrás decidiu colocar no ar o seu blog para abrir um canal direto de comunicação com o público eles trouxeram um antropólogo para declarar no jornal que aquilo era uma forma de terrorismo de Estado! A comunicação deles é liberdade mas a dos outros é terrorismo. Que vergonha! Quem é mesmo que não enxerga o outro e mente de maneira compulsiva?

JABOR — Sei que este é um artigo óbvio, repetitivo, inútil, mas tem de ser escrito...
Está havendo uma desmoralização do pensamento. Deprimo-me: Denunciar para quê, se indignar com quê? Fazer o quê?'
A existência dessa estirpe de mentirosos está dissolvendo a nossa língua. Este neocinismo está a desmoralizar as palavras, os raciocínios. A língua portuguesa, os textos nos jornais, nos blogs, na TV, rádio, tudo fica ridículo diante da ditadura do lulo-petismo. A cada cassado perdoado, a cada negação do óbvio, a cada testemunha, muda, aumenta a sensação de que as idéias não correspondem mais aos fatos!!!!!


Concordo plenamente! Chamar o período militar de dita branda, como o fez o Jornal Folha de São Paulo, e o governo Lula de ditadura, como o faz o nobre cineasta, apenas comprova como as idéias divulgadas pela mídia conservadora não correspondem aos fatos. E olha que o Lula nem tentou mudar a legislação para garantir um terceiro mandato. Quem fez isto — mudar legislação para se manter no poder — foi o Fernando Henrique Cardoso e ninguém chama ele de ditador tucano por isso. Não me causa espanto que Arnaldo Jabor utilize o verbo impor-se junto à palavra verdade. Os donos da verdade simplesmente não toleram a diversidade de opinião e reagem a toda e qualquer tentativa de pluralizar o discurso público desqualificando-as como atentado à liberdade de imprensa.

JABOR — Pior: que os fatos não são nada - só valem as versões, as manipulações.

Fatos? Quem se importa com os fatos na grande imprensa? Ali Kamel, editor de jornalismo da Globo, já declarou publicamente que a função dele como diretor de jornalismo é a de testar hipóteses. Diogo Mainardi foi condenado por injúria e difamação. Ontem mesmo li uma reportagem de como um jornalista de O Globo usou a resposta dada por Aluizio Mercadante a uma pergunta sobre o resultado das eleições para governador de 2006 como resposta à uma outra pergunta sobre o dossiê dos aloprados. O que aconteceu com o relato imparcial dos acontecimentos? O cineasta parece sugerir que fato é somente aquilo em que ele acredita, assim como versão é aquilo em que acreditam seus opositores. Independentemente dos fatos.

JABOR — No último ano, tivemos um único momento de verdade, louca, operística, grotesca, mas maravilhosa, quando o Roberto Jefferson abriu a cortina do país e deixou-nos ver os intestinos de nossa política. Depois surgiram dois grandes documentos históricos: o relatório da CPI dos Correios e o parecer do procurador-geral da república. São verdades cristalinas, com sol a Pino. E, no entanto, chegam a ter um sabor quase de gafe. Lulo-Petistas clamam: Como é que a Procuradoria Geral, nomeada pelo Lula, tem o desplante de ser tão clara! Como que o Osmar Serraglio pode ser tão explícito, e como o Delcídio Amaral não mentiu em nome do PT ? Como ousaram ser honestos? Sempre que a verdade eclode, reagem.

E quando a verdade não chega nem a eclodir o que acontece? Será que as pessoas ficam menos burras? Menos indignadas? Menos ignorantes? Será que a corrupção diminui? Será que já nos esquecemos do Procurador Geral da República Geraldo Brindeiro que ficou carinhosamente conhecido como engavetador geral da República quando serviu junto a FHC? E o mensalão do Sérgio Motta que garantiu os votos no Congresso para a aprovação da emenda que mudava a Constituição tornando legal o dispositivo da reeleição? Imagine se Lula tentasse mudar a Constituição da mesma forma! Quantos não o acusariam de ditador! Quantos não defenderiam idéias golpistas assim como fizeram durante a crise de Honduras? Mas o FHC pode! E tudo é vendido de maneira muito civilizada num pacotinho DeLuxe como necessário e fundamental para o bem de todos e felicidade geral da nação. Digam ao povo que fico! Salve, salve o charme e o bom gosto pragmático dos tucanos como costuma “eulogizar” Arnaldo Jabor em seus devaneios e sofismos alexandrinos. A compra de votos, nesse contexto, teria sido menos indigna? Mais aceitável? Menos corrupta pois foi feita pelos digníssimos doutores que apoiam um sociólogo formado em Paris e não pelos aloprados que seguem um metalúrgico sindicalista de Garanhuns? Isso sim é de um levianismo e desonestidade intelectual ímpares que depõem contra a noção de ética de seus porta-vozes. Promover o esquecimento da herança tucana é uma leviandade tão grave quanto seria não expor os problemas do governo Lula. É nessa contradição que se afunda a retórica moralista da imprensa conservadora quando tentam imputar exclusivamente a membros do PT a culpa pela prática, totalmente repreensível, de compra de votos de parlamentares. Pergunte-se por que os dois pesos e as duas medidas e estaremos mais próximos de um país melhor. Pergunte-se qual a diferença entre a corrupção modernizadora tucana e a corrupção ideológica petista.

JABOR — Quando um juiz condena rápido, é chamado de exibicionista'. Quando apareceu aquela grana toda no Maranhão (lembram, filhinhos?), a família Sarney reagiu ofendida com a falta de 'finesse' do governo de FH, que não teve a delicadeza de avisar que a polícia estava chegando....

Mas agora é diferente.

As palavras estão sendo esvaziadas de sentido. Assim como o stalinismo apagava fotos, reescrevia textos para contestar seus crimes, o governo do Lula está criando uma língua nova, uma neo-língua empobrecedora da ciência política, uma língua esquemática, dualista, maniqueísta, nos preparando para o futuro político simplista que está se consolidando no horizonte.


Pois é, durante a blitzkrieg pelo aumento dos juros, apesar dos índices registrarem queda da inflação, todos os grandes jornais noticiavam o perigo iminente de inflação a fim de justificar o aumento de juros como decisão acertada do Banco Central. A Globo chegou ao cúmulo de colocar no ar um especialista dizendo que, sim, havia o perigo de inflação por que o IPCA não tinha caído, ele tinha parado de subir! E o povo ignorante engole tudo. Mais uma vez, quem é mesmo que usa a língua para distorcer a realidade?

Essa acusação de Jabor parece descrever com mais fidelidade o comportamento da grande imprensa do que as posições do governo Lula. A entrevista de William Bonner e Fátima Bernardes com Dilma Rousseff no Jornal Nacional, por exemplo. Começam criticando a personalidade da candidata como se não tivessem nada mais importante sobre o que falar. Afirmam, então, que ela passa uma imagem dura, intolerante e que um chefe de Estado deveria estar preparado e ser capaz de fazer alianças, de negociar. Ela responde bem à provocação dizendo que para se obter resultados você, às vezes, tem que agir com mais firmeza. Então eles mudam o foco e questionam as alianças feitas pelo PT durante o governo. Ou seja, não importa o que você faça. Se você faz alianças é criticado como hipócrita e se não faz é criticado como autoritário. Isso não acrescentou nada ao eleitor. Não esclareceu nada sobre propostas da candidata. Bonner tentou apenas desqualificá-la e de maneira extremamente rude e deseducada que, usando as palavras da própria empresa, demonstra “um comportamento incompatível com a posição que ocupa” como editor do Jornal Nacional. Aqui no Brasil, se você quer realmente que a imprensa cumpra o seu papel social deve votar nos candidatos que ela não apoia.

JABOR — Toda a complexidade rica do país será transformada em uma massa de palavras de ordem, de preconceitos ideológicos movidos a dualismos e oposições, como tendem a fazer o Populismo e o simplismo.

Melhor exemplo de que você só acusa o outro daquilo que é capaz de perceber em si mesmo. E Jabor acusa seus antagonistas do erro que ele mesmo comete ao caracterizar o governo Lula como populista. Nada mais simplista e reducionista! O caráter pejorativo frequentemente associado ao uso da palavra populismo não somente expõe uma certa arrogância intelectual como é um paradoxo ideológico por si só. Se a democracia é o sistema onde a maioria decide os rumos que uma sociedade deve seguir, o governante teria que necessariamente acatar ou orientar suas escolhas tendo por base o desejo do povo expresso nas urnas. Processo semelhante de desqualificação aconteceu com a expressão Terceiro Mundo que ao longo do tempo adquiriu sentido pejorativo virando sinônimo de pobreza mas que na verdade surgiu como designação de uma iniciativa multilateral que ficou conhecida como o movimento dos países não alinhados que foi uma resposta à bipolarização que dominou as relações internacionais do pós guerra. Por que haveria de se condenar ou desqualificar alguém que supostamente estaria agindo em benefício do povo que o colocou no poder? Aqueles que, com frequência, usam esse tipo de palavra de ordem visam única e exclusivamente desqualificar governos populares e são, coincidentemente, avessos à políticas públicas democráticas de transferência de renda e defensores do receituário neo-liberal que já deu provas mais do que suficientes de que a idéia da auto-regulamentação dos mercados nada mais é do que um modelo teórico de caráter utópico e dogmático. A defesa de soluções neo liberais pós crise de 2008 é análoga em incoerência à defesa do comunismo histórico depois da queda do muro de Berlim. Na verdade nos últimos anos a imprensa tem se mostrado como um instrumento muito mais comprometido com seus próprios interesses do que com sua função de fomentar de maneira isenta o processo de formação de opinião da sociedade.

Dizer que nada mudou, isso sim é repetir preconceitos ideológicos perpretados por uma mídia conservadora incapaz de aceitar que o Brasil vai muito além dos limites da ponte aérea Oscar Freire–Garcia D’Ávila. Além do mais, o setor bancário, geralmente dissociado do universo semântico da palavra povo, nunca registrou tanto crescimento quanto durante o governo Lula.

JABOR — Lula será eleito por uma oposição mecânica entre ricos e pobres, dividindo o país em 'a favor' do povo e 'contra', recauchutando significados que não dão mais conta da circularidade do mundo atual. Teremos o 'sim' e o 'não', teremos a depressão da razão de um lado e a psicopatia política de outro, teremos a volta da oposição Mundo x Brasil, nacional x internacional e um voluntarismo que legitima o governo de um Lula 2 e um Garotinho depois. Alguns otimistas dizem: Não... este maremoto de mentiras nos dará uma fome de Verdades!

Pois é ricos e pobres são conceitos relativos e ultrapassados que não tem nada a ver com política e com a nova ordem mundial que de circular não tem absolutamente nada. São rótulos apenas, nada mais, desvinculados de interesses, de praxis e de maneiras próprias de ver e se relacionar com o mundo. Isso sim seria uma manipulação linguística empobrecedora da ciência política. Nada mais longe da verdade da qual o nosso autor parece sentir tanta falta.

De fato, são as políticas de redistribuição de renda, ferozmente criticadas como assistencialismo e empreguismo, que são dotadas, elas sim, de enorme circularidade e inclusive se enquadrariam dentro de um conceito mais amplo muito na moda hoje em dia que é o da sustentabilidade. Essas políticas se opõem diametralmente às já conhecidas “vamos fazer o bolo crescer primeiro para depois dividir” popularizadas como “trickle down economics” nos anos 80 e início dos noventa durante o apogeu do Consenso de Washington quando proclamava-se o fim da história: outra falácia empobrecedora da ciência política. Mas como diz a sabedoria popular: só acaba quando termina. E estamos ainda muito longe do fim. Seria completamente insustentável permitir que uma economia como a nossa continuasse a manter metade da população brasileira vivendo com menos de um dólar por dia como acontecia há alguns anos.

Desde 2006, quando esse artigo foi escrito por Arnaldo Jabor, o PSDB vem se mostrando cada vez mais ineficiente em seus métodos de fazer oposição ao PT. Primeiro, por que simplesmente compactua com muitas das posições do governo Lula realmente passíveis de crítica como a complacência com o setor bancário, política de juros e aumento da participação de capital especulativo e financeiro na economia. E segundo, por que, imaturamente, se posiciona contra iniciativas que produzem resultados cujo impacto pode ser facilmente percebido pelo eleitor como o PAC e os programas sociais de redistribuição de renda. E aí está um dos maiores legados que Lula deixou para a história política do Brasil: a necessidade de um redirecionamento da oposição.

Até a eleição de Lula em 2002, o debate político se dava ainda embalado por uma versão pop da antiga Política dos Governadores da República Velha, onde representantes das diversas oligarquias regionais se revezavam no poder sem divergir significativamente sobre os rumos que o país deveria seguir. A continuidade era a tônica. O sucesso e a popularidade de Lula estão forçando uma renovação da política brasileira que não mais irá permitir que representantes desses interesses oligárquicos debatam entre si o futuro do país. Apesar de, ao longo de seu governo, Lula ter optado por se aproximar de alguns de seus históricos adversários como o clã Sarney, é possível dizer que a complexidade rica do nosso país, aparentemente tão valorizada pelo cineasta, finalmente debutou em sua dimensão política executiva de onde havia sido mantida como mera observadora desde o grito do Ipiranga. A oposição será obrigada a se renovar se quiser se manter politicamente viável. A presença de Marina Silva e Plínio Arruda nessa campanha são a maior prova desse processo; e o significativo esvaziamento do discurso de oposição do PSDB e do DEM, um sinal da perplexidade desses setores diante da necessidade iminente de se adaptarem aos novos tempos.

Os elevados índices de popularidade de Lula não se devem a uma população ignorante como gostam de dizer os bufões da mídia conservadora mas sim ao fato de pessoas comuns serem capazes de perceber de maneira muito empírica como suas vidas melhoraram e como escolhas tomadas pelo governo produziram efeitos positivos tangíveis no seu dia a dia. Não precisam de IPCA’s, PIB’s ou análises aprofundadas de qualquer indicador macroeconômico para isso. Basta ver no final do mês como o poder de compra do salário aumentou, como foram capazes de comprar um carro, adquirir casa própria, conseguir um emprego, estudar ou ter acesso a bens de consumo com os quais nem sequer ousavam sonhar. Não se pode nem argumentar que essas pessoas sejam vítimas de propaganda, como no caso dos Estados Unidos, visto que a grande mídia raramente concorda com as posições do governo. Se existe um efeito de propaganda, este, definitivamente, não se manifesta em opiniões favoráveis ao governo Lula. A divulgação, em 2010, de uma polêmica criada pela censura desnecessária de um texto fácil e factualmente contestável de um cineasta brasileiro durante a campanha de 2006 vem apenas corroborar essa tese. Partidos como PSDB e PFL(DEM), diante dos resultados do governo Lula, se encontram à beira do ostracismo pois insistem em representar forças políticas já em estado avançado de decomposição. O que explica o esforço do PFL em mudar de nome e passar a se chamar — ironias do destino — Democratas tentando tirar vantagem política da onda da Obamamania.

Psicopatia política é, na verdade, fazer malabarismos retóricos e contorcionismos intelectuais hiperbólicos com o simples propósito de negar os avanços tácitos conseguidos nesses últimos 8 anos. Depressão da razão é repetir inconscientemente o mantra de que nada mudou. Por isso encaminho o link do documento que o ministro Guido Mantega disponibilizou recentemente no site do Ministério da Fazenda sobre o desenvolvimento da economia brasileira nos últimos anos. Veja com os seus próprios olhos e tire suas conclusões. Ao se entender como e quanto mudou talvez possa se ter uma idéia do porquê algumas pessoas insistem em afirmar o contrário.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Discurso de Mike Prisner
contra a ocupação do Iraque

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Mal Merval, mal Merval...

No O Globo de hoje, já prevendo o resultado da votação, Merval Pereira em sua coluna rotula o posicionamento do Brasil como novas derrotas da política externa brasileira. Escreve ele que o Brasil "tentou, sem sucesso, inviabilizar a solução defendida pelos americanos.” Pois é, parece que os tão celebrados carros-chefe da campanha presidencial de Obama que lhe renderam um prêmio Nobel da Paz simplesmente por se manifestarem como intenção, provaram-se nada mais do que isso: meras intenções.

Curioso como logo depois de firmado o acordo, a mídia tentou associar Obama ao sucesso das negociações com a estória da tal carta que teria vazado, cujo conteúdo, segundo o próprio O Globo, não teria sido comentado pelo Palácio do Planalto. Pois bem, quem mais ganharia com o “desastroso vazamento” senão o próprio Obama? Todos os comentários no site do New York Times daquele dia eram favoráveis aos esforços de Turquia e Brasil no sentido de trazer o Irã de volta à mesa de negociações e condenavam a insistência de Hillary em partir para a imposição de sanções. Mas Merval se mantinha firme em sua estória acusando o Palácio do Planalto de ter causado um desgaste desnecessário entre Washington e Brasília diante de tamanha indiscrição ao mesmo tempo que publicava ipsis litteris o conteúdo da tal carta. Se, como o próprio O Globo noticiou, o Planalto não teria comentado o conteúdo da carta, como é que ele chegou tão detalhadamente às mãos de Merval? Quem teria cometido maior “indiscrição”? Em demonstração de total subserviência ideológica acabou por lançar a hipótese de que o Brasil teria arruinado toda e qualquer chance de aspirar a uma vaga de membro permanente do Conselho de Segurança. Nos dias que se seguiram era possível sentir a torcida para que os Iranianos não cumprissem os prazos de entrega combinados para com isso alimentar ainda mais a mensagem de que não são confiáveis.

Como é que nações que, de fato, e não apenas retoricamente, implementem tais esforços podem ser acusadas de obstrucionistas? É o cúmulo da distorção, a mais completa tradução dessa deselegância nem tão discreta desses que se auto-proclamam porta vozes da sociedade brasileira. O Irã aceitou enviar todo o seu estoque de Urânio à Turquia para que lá fosse iniciado o processo de enriquecimento e que ele continuaria enriquecendo esse Urânio até os 20% permitidos para fins pacíficos em suas instalações que estão abertas às inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica. Com isso minimizaria as suspeitas dos países ocidentais sobre o destino do Urânio importado. Ironicamente, todo o circo é armado para acalmar a paranóia ocidental quando, ao que me parece, o Irã tem muito mais motivos para se sentir ameaçado. Então qual é a contrapartida dessas sanções? O que se espera do Irã? O que susan Rice quer dizer quando declara que “nosso objetivo é sempre persuadir o Irã a suspender seu programa nuclear e a negociar de maneira construtiva e de boa fé com a comunidade internacional.” Então, Brasil e Turquia não fazem parte da comunidade internacional? Não foi a iniciativa uma maneira construtiva de se lidar com o impasse? Não se conseguiu exatamente o que se pretendia quando as negociações foram interrompidas meses atrás? Que parte do acordo mediado pelos dois países não demonstra boa fé do Irã? Ou boa fé seria abdicar completamente do seu direito como nação soberana de administrar a sua matriz energética e cuidar para que seu desenvolvimento não dependa da benevolência externa?

Como o próprio Celso Amorim declarou: se for para adotar uma postura de subserviência total às grandes potências mundiais — como querem os arautos globais — não há a menor necessidade de se ter mais membros permanentes no Conselho de Segurança. Tenho muito orgulho da nossa diplomacia sob a liderança de Celso Amorim e, se ser um derrotado significa ter tido a coragem de acreditar que um outro mundo é possível e, mesmo diante de todas as dificuldades e do ceticismo ao seu redor, demonstrar um compromisso inabalável com a construção da paz, então devemos estar muito bem acompanhados nessa derrota.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Resposta a Charles Krauthammer

Como a alma da propaganda é a repetição, o Globo de hoje, publica na seção de opinião, página 7 do caderno principal, um artigo de Charles Krauthammer, jornalista do jornal americano The Washington Post. O artigo já em seu título “Os judeus são o problema” lança a velha carta do antissemitismo. É muito curioso notar como que no discurso público americano os argumentos utilizados nas reivindicações de negros que, de alguma forma, acusem a sociedade americana de racista são instantaneamente rotulados e desqualificados sob o título de the race card (a carta da raça, que tem mais um sentido retórico de a desculpa da raça). Mas ninguém é acusado de jogar a carta do antissemitismo quando, para defender as políticas fundamentalistas do Likud, acusam seus opositores de odiarem todos os judeus.

É isso que tenta fazer Charles Krauthammer em seu artigo. Quando escreve “A Turquia denuncia sua ilegalidade, desumanidade, barbaridade etc” tenta desmoralizar as reivindicações turcas como se fossem improcedentes e absurdas. O uso do eco e do etcetera como ferramentas de discurso conferem ao texto um tom de extrema arrogância pois implica a existência de outras acusações que de tão previsíveis não merecem nem ser mencionadas. Em vez de se preocupar em construir argumentos jurídicos decentes para defender Israel, tenta desqualificar todos os que se opõem a seu ponto de vista simplesmente chamando-os de idiotas úteis, simpatizantes do terror, indiferentes europeus etc. Viu o que o etcetera fez? Desqualificou o argumento como repetitivo e previsível. Entretanto, parece que alguns argumentos são mais desqualifiçáveis que outros. Não satisfeito, levanta suspeitas sobre a idoneidade da mediação da comunidade internacional, e em plena globalização, tenta ofender os países não alinhados com o já gasto, ultrapassado e pejorativo conceito de terceiro mundo.

O argumento de Krauthammer, se é que esse tipo de estratégia pode se chamar argumento, começa citando Leslie Gelb que acredita que “o bloqueio (a Gaza) não só é perfeitamente racional como legal. Gaza, sob o Hamas, é um inimigo declarado de Israel – declaração apoiada em mais de 4 mil foguetes disparados contra território Israelense”. Veremos mais adiante que tal afirmação não se sustentaria em nenhum tribunal decente do mundo.

O segundo pilar de seu argumento é uma comparação que de tão absurda só pode ter como intenção legitimar algo ilegitimável. Escreve ele: “Na Segunda Guerra Mundial, os EUA, com legalidade total, bloquearam Alemanha e Japão”. Acredite se quiser, mas a última vez que o Congresso dos Estados Unidos declarou guerra oficialmente foi durante a segunda Guerra Mundial. Dessa forma, EUA, Alemanha e Japão, todos Estados reconhecidos, não só se constituíam em sujeitos de direito internacional mas também eram, declaradamente, Estados beligerantes, o que os coloca sob um ordenamento jurídico completamente diferente daquele que rege o que aconteceu na semana passada no contexto do conflito entre Israel e Palestina. A Palestina não é reconhecida como Estado e o Hamas não é reconhecido como o governo a exercer soberania sobre o território palestino mesmo tendo sido vitorioso nas eleições de 2006. Consequentemente, nem o Hamas nem a Palestina podem ser considerados sujeitos de direito internacional. A comparação, pelo menos do ponto de vista jurídico, chega a ser infantil de tão absurda, e só pode ter sido feita de má fé. Israel se nega a reconhecer o Hamas como governo legítimo, o que seria um passo importante no processo de reconhecimento do Estado Palestino, mas se dá o direito de declarar guerra a um grupo que não é sujeito de direito internacional. Isso exemplifica muito bem o posicionamento ambíguo de Israel que explora da maneira mais imoral possível o vácuo jurídico dentro do qual mantêm todos os palestinos. Porém, é de se esperar que a mente que transforma críticas às lideranças do Likud em expressões de antissemitismo irá julgar perfeitamente racional, como disse Gelb, o uso indiscriminado da violência contra todo o povo Palestino como retaliação ao Hamas. Como costumava dizer uma nobre senadora: generalizações perversas...

Segue o autor com suas comparações:“Em 1962, durante a crise dos mísseis, em Cuba, os EUA bloquearam a ilha. (...) Ainda assim Israel é acusado de crime internacional por fazer exatamente o que John Kennedy fez”. E é aqui que o argumento toma proporções de delírio. O bloqueio à Cuba vem sendo condenado quase que anualmente pela comunidade internacional. Em 2005, a Assembléia Geral das Nações Unidas condenou o bloqueio à Cuba pela décima quarta vez! Apenas três países votaram contra a resolução. Estados Unidos, Israel e as ilhas Marshall! Em 2006, novamente, a mesma Assembléia Geral aprovou resolução de mesmo conteúdo por 183 votos a favor, 4 contra e uma abstenção. Dessa vez a nação de Palau se juntou aos Estados Unidos, Israel e Ilhas Marshall. Em 2008, a décima sexta resolução da Assembléia Geral da ONU condenando o bloqueio dos Estados Unidos à Cuba foi aprovada por ampla maioria. Votaram contra Estados Unidos, Israel e Palau. Até o Papa já condenou o bloqueio americano à Cuba quando esteve na ilha em 1977 e 1998. É claro que as votações na Assembléia Geral são simbólicas já que para ser implementada qualquer resolução deve ser aprovada pelo Conselho de Segurança onde os Estados Unidos tem poder de veto. O fato do poder de veto dos Estados Unidos no Conselho de Segurança haver perpetuado uma prática considerada ilegal tão ostensivamente por toda a comunidade internacional não pode ser usado como argumento a fim de conferir a Israel o direito de violar as normas internacionais da mesma maneira. Por outro lado, se os Estados Unidos podem por que qualquer outro país do mundo não poderia? Qual é a fonte desses direitos que parecem ser reivindicáveis somente por Israel e Estados Unidos? Direito adquirido legítimo vem do costume internacional ou de tratados. Os fundamentalistas que me desculpem mas o antigo testamento não é, nem nunca será, fonte de direito internacional.

Outro detalhe jurídico é que a Convenção de Montego Bay concluída em 10 de dezembro de 1982, que é a referência jurídica para o incidente ocorrido entre os comandos Israelenses e o navio Mavi Marmara, só entrou em vigor como prática e costume internacional em 16 de Novembro de 1994 depois de 12 meses da data de depósito do sexagésimo instrumento de ratificação ou de adesão. Ou seja, em 1962, o ordenamento jurídico que existe hoje não existia. O que não significa dizer que Kennedy não tenha violado normas de direito internacional ao impor o bloqueio à Cuba. A Conferência Naval de Londres de 1909, um dos Tratados mais antigos versando sobre as regras de engajamento militar no mar, define bloqueios como atos de guerra, ou seja, só seriam lícitos e regulamentados entre Estados declaradamente beligerantes. Diante da inexistência de uma declaração de guerra oficial entre Cuba e Estados Unidos e entre Israel e o Hamas/Palestina, juridicamente não existe conflito armado. Por conseguinte, tanto o bloqueio à Cuba quanto o bloqueio à Gaza, são considerados pelo Direito Internacional como um ato de guerra econômica e, devido à inexistência de norma internacional que o justifique em tempos de paz, podem ser enquadrados como genocídio, que, entre outros, é definido pela Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio como “submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial.”

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Uma questão de honra


Em ação quase suicida, moradores de Jabaliyah na Palestina se rebelam e matam uma dúzia de soldados Israelenses - apesar de rapidamente sufocado, levante é festejado como grande vitória pelos palestinos.
Desde 1967, aproximadamente 711.000 palestinos fugiram ou tiveram que abandonar as áreas onde viviam que ficaram sob controle do exército Israelense. Desde então os palestinos que permaneceram em seu território trataram de organizar a sua resistência. O resultado foi a criação do Hamas. O Hamas, havia meses, vinha infiltrando armas na Faixa de Gaza. Em 9 de Dezembro de 1987, finalmente, numa ação surpreendente e quase suicida, eles pela primeira vez dispararam contra os israelenses.

Evidentemente, a resistência não pode visar a libertação total da Palestina ou a destruição do aparato Israelense local, infinitamente maior e melhor aparelhado que a clandestina organização Palestina. Com essas ações, além de talvez adiar um destino que parece irreversível, o Hamas pretende pavimentar um final digno para os Palestinos da Faixa de Gaza, pontuado por orgulho e esperança. “A batalha na rua nos encorajou. Pela primeira vez desde a ocupação vimos soldados Israelenses colados às paredes, engatinhando no chão, correndo para se cobrir, hesitando antes de dar um passo, com medo de ser atingido por uma bala palestina. Os gritos dos feridos nos deram alegrias e aumentaram nossa sede de batalha”, escreveu numa carta Khaled Meshaal, integrante do grupo.

Os líderes militares Israelenses parecem estar subestimando a cólera que toma conta dos Palestinos, por todas as atrocidades contra eles cometidas, e que incita a resistência contra os Israelenses. Nos últimos anos cantos como:
“Palestina é a nossa casa
Nós nascemos aqui
Nós vivemos aqui
Nós amamos aqui
Não odiamos ninguém, mas desprezamos a injustiça
Na paz acreditamos, pela liberdade nós lutamos
Nós temos o direito de viver em paz em nossa Palestina. Por isso existe Intifada."

são entoados na Faixa de Gaza. Por tudo isso dificilmente Shimon Peres conseguiria entregar sua lição de casa na data pretendida. E a punição de Yitzhak Shamir, um dos arquitetos da solução final, não deve ser caracterizada pela clemência.

Esse texto, na verdade foi extraído do website Na História de VEJA.com, que segundo a própria revista “faz o leitor viajar no tempo: os fatos que marcaram o passado são contados por uma edição completa da revista, com os mesmos critérios editoriais dos dias atuais. Cada número busca reconstituir um exemplar de VEJA como se a revista existisse antes de 1968, ano em que o primeiro exemplar da publicação chegou às bancas.”

O conteúdo original, é claro, não se refere à intifada mas sim ao levante do Gueto de Varsóvia e pode ser encontrado na edição simulada de Fevereiro de 1943 do referido site.

A desconstrução do texto de Veja fez-se com o intuito de expor as graves semelhanças entre o levante do gueto de Varsóvia e o levante palestino contra a ocupação Israelense. Apesar das enormes semelhanças as escolhas das pessoas envolvidas nos dois conflitos são comumente compreendidas pelo discurso da grande mídia sob pontos de vistas diametralmente opostos. As posições de Veja ilustram bem esse paradoxo e comprovam que esse tipo de recurso é muito usado na grande mídia com propósitos um pouco menos nobres. Ao invés de tentar elucidar assuntos complexos, esse tipo de estratégia de comunicação é usada para simplificar, confundir e perpetuar uma ignorância conveniente que só leva à manutenção do status quo e à legitimação de mais violência.

O Globo de 5 de Junho de 2010 carrega um bom exemplo dessa estratégia. Na página 25 do caderno O Mundo dedicada à crise criada pelo ataque de Israel ao navio turco Mavi Marmara que carregava ajuda humanitária para a Faixa de Gaza lê-se na manchete: “Turquia se afasta de Israel e apoia o Hamas”. Logo abaixo, a foto principal da página mostra um homem barbudo de cenho franzido carregando um rifle com uma bandeira Turca ao fundo. Conclusão imediata: o homem seria turco e violento, o que nos dias de hoje parece ser mais do que suficiente para caracterizar alguém como terrorista.

Porém, o leitor atento continuaria a ler a legenda da imagem que dizia: “Após as orações de sexta-feira, protestos varreram o mundo islâmico: em Ayin el-Hilweh, no sul do Líbano, refugiado Palestino agita um rifle em frente a bandeira turca.” No Líbano? A foto descrita acima ilustra a reportagem de Renata Malkes que começa da seguinte maneira: “O governo da Turquia decidiu reduzir ao mínimo todos os acordos de cooperação econômica e militar com Israel.” Mais adiante Renata publica declaração do Primeiro Ministro turco Erdogan afirmando não achar que o Hamas seja uma organização terrorista. Declaração essa que recebe destaque no canto superior esquerdo da página. Todos os elementos estão aí juntos contando uma estória subliminar que diz: a Turquia é um país violento, islâmico que não merece a confiança do mundo e é aliado do Hamas e do Iran. Em momento algum menciona-se que até antes do ataque de Israel, a Turquia se constituia em um dos maiores aliados de Israel no Oriente Médio; que a Turquia, apesar da grande maioria da sua população ser muçulmana, se constitui em um Estado laico – bem diferente de Israel e do Iran que são Estados regidos pelos dogmas de suas respectivas religiões; ou que a Turquia exerce, legitimamente, sua soberania de maneira independente nos dando um grande exemplo desse posicionamento quando impediu que os Estados Unidos usassem as bases militares turcas para invadir o Iraque. É claro que essa campanha contra a Turquia tem a ver com a intermediação, fundamental, do primeiro ministro turco nas recentes negociações com o Iran. O Ocidente civilizado está retaliando com requintes de imoralidade.

Bom, sujada a barra da Turquia o discurso volta-se aos ativistas. A tarefa é a mesma. Caracterizá-los como terroristas cruéis e criminosos. Logo abaixo da legenda da foto principal, corroborando o direcionamento do discurso sendo até então empregado, uma segunda manchete afirma: “Ativistas rejeitam acordo e são cercados. Navio irlandês é interceptado por Marinha israelense a poucos quilômetros de Gaza” As duas fotos que ilustram a matéria de Daniela Kresch mostram forças policiais reprimindo os violentos manifestantes anti-Israel na Cisjordânia e em Amã. A frase é perfeita. Quando eu digo que ativistas não aceitam o acordo eu digo que Israel tentou negociar e que a intransigência e o radicalismo dos ativistas deu motivos a Israel para usar a força sem qualquer consideração sobre os aspectos jurídicos que envolvem o caso. A verdade é que não houve acordo porque, simplesmente, ninguém se encontrava dentro de território Israelense, e, que, por isso não tinham que ser obrigados a reconhecer o poder de Israel naquelas águas.

Mas Daniela não para por aí. Publica uma declaração do ministro das Relações Exteriores de Israel, Avigdor Liebermann que afirmou ao canal 1 da TV local: “Vamos bloquear esse navio e qualquer outro que tente desafiar a soberania israelense. Não há nenhuma chance que o Rachel Corrie chegue à costa de Gaza.” Soberania? Que soberania? Renata talvez não saiba (o que depõem gravemente contra ela no quesito seriedade e isenção) mas a Faixa de gaza não é reconhecida como parte de Israel. Consequentemente, Israel não pode exercer jurisprudência sobre o mar territorial da faixa de Gaza. Por isso o acordo foi recusado. Porque Israel é que estava violando costume internacional ao tentar interceptar um navio em águas consideradas internacionais. Daniela não levanta essa questão em parte alguma de sua reportagem, apenas segue com a mentira que “Por volta das 20h, o barco alcançou a marca das 100 milhas da costa de Israel – ponto onde a marinha israelense interceptou o Mavi Marmara.” Costa de Israel? Como é que poucos quilômetros se transformaram em 100 milhas marítimas? Desde quando os territórios ocupados são reconhecidos internacionalmente como parte de Israel? E mesmo que fossem parte de Israel, a distância de 100 milhas é considerada zona econômica exclusiva onde, segundo a convenção de Montego Bay, não são reconhecidos direitos de visita nem de perseguição a embarcações.

Na página seguinte, O Globo continua firme em seu propósito. Publica uma entrevista com Elisabeth Roudinesco, uma historiadora e psicanalista francesa que chega a fazer declarações muito lúcidas e pertinentes. Ela aborda a complexidade da questão da identidade judaica, manifesta seu apoio à solução de dois Estados, critica o sistema político Israelense que acaba por favorecer a permanência das forças mais reacionárias do país no poder e o pior... diz que adora o Lula!!! Todos esses assuntos renderiam um debate importante porém foram completamente esvaziados pela edição da entrevista que descambou para uma discussão inócua sobre a condenação do uso da burca e do quipá em escolas públicas francesas. Armadilha da qual a historiadora saiu com muita desenvoltura e inteligência.

O título escolhido para a entrevista, “Ataque a barco estimula o antissemitismo”, apesar das aparências, não é uma citação da entrevistada. E mesmo que fosse, seria mesmo essa a idéia mais importante da entrevista? Ou seria a ponderação sobre todas as nuances que envolvem o complexo universo da identidade judaica? Por que não destacou-se a frase “A política de Israel tem sido catastrófica” ou “o Estado (judeu) é uma coisa, os judeus são outra”? O que me leva de novo ao velho mantra e à distinção feita pela historiadora. Nem todos os judeus são israelenses e nem todo Israelense apoia o Likud. Então por que as críticas à políticas do Likud deveriam ser caracterizadas como antissemitismo? Fica claro que a associação retórica simplista foi uma tentativa de O Globo e não de sua entrevistada.

Ao ler a entrevista entende-se que Elisabeth Roudinesco, na verdade, diz o seguinte: ”Tudo isso é catastrófico para os judeus – pois estimula o antissemitismo – e também para todo o mundo.” O tudo na frase não se refere ao ataque ao barco como a editoria do jornal tenta transparecer pelo título ardilosamente disfarçado de citação, mas é uma crítica muito mais profunda às escolhas dos líderes nacionalistas do Likud que só contribuem para a radicalização e polarização do processo.

A grande maioria dos partidários do Likud apoia um movimento pela libertação de Yigal Amir, condenado à prisão perpétua pelo assassinato do então primeiro ministro Yitzhak Rabin que, em 1994, ganhou o prêmio Nobel da Paz junto com Yasser Arafat e Shimon Peres por conta dos acordos de paz de Oslo. Yigal Amir é visto como um herói por essas pessoas que são da opinião de que a política de Yitzhak Rabin colocava em risco a vida de vários Israelenses. Assim, não só justificam o seu assassinato como mostram que estão convencidos que não existe a possibilidade de um diálogo ou coexistência, o que os torna culpados do mesmo crime que acusam os integrantes do Hamas, ou seja, não aceitar a existência do Estado vizinho.

Quando o Hamas foi legitimamente eleito em 2006 Demétrio Magnoli defendeu em um editorial de O Globo o seguinte argumento: as nações civilizadas (i.e. poderes ocidentais) não devem permitir que um grupo que não acredita em valores democráticos (i.e. a existência de Israel) chegue ao poder mesmo que por vias democráticas. Agora por que esse mesmo argumento não é usado para impedir que líderes do Likud assumam a liderança de Israel já que seus eleitores consideram aceitável que se assassine um primeiro ministro que busque por uma conciliação com os Palestinos? E aí eu me lembro de quando perguntávamos como é que os alemães permitiram que as coisas chegassem àquele ponto.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Uma visão jurídica sobre o ataque de Israel

A fim de fundamentar o argumento de legítima defesa a maioria dos que defendem o ataque Israelense ao navio de ajuda humanitária Mavi Marmara invocam o manual de direito internacional humanitário de San Remo, o que se constitui em um grande equívoco, ou simplesmente má fé, uma vez que San Remo só pode ser invocado no caso de conflito armado. Conflito armado é definido no direito humanitário internacional de duas maneiras:
  • a) conflito armado internacional, quando o conflito acontece entre dois ou mais Estados juridicamente reconhecidos como sujeitos de direito internacional público.
  • b) conflito armado não-internacional, quando acontece entre forças governamentais e grupos não governamentais.
O que ocorreu não pode ser caracterizado como conflito armado nem de uma forma nem de outra. Uma vez que o navio atacado tinha nacionalidade Turca, teria que existir um conflito declarado entre o Estado Turco e o Estado de Israel para caracterizá-lo como conflito armado internacional, o que não procede. Pode-se argumentar que a guerra de Israel é contra o Hamas e a Palestina, porém o Estado da Palestina não possui soberania sobre nenhum território e por conta disso não pode ser considerado sujeito de direito internacional público.

Por outro lado, o conflito entre Israel e Palestina também não pode ser caracterizado como conflito armado não-internacional porque os territórios ocupados não são oficialmente reconhecidos pelo direito internacional como sendo parte do Estado de Israel. Essa situação deixa os palestinos em um vácuo jurídico muito perigoso que é constantemente explorado por Israel. Diante dessa impossibilidade conceitual temos que recorrer à Convenção da Jamaica ou Convenção de Montego Bay como referência jurídica para esse incidente.

Segundo as definições da Convenção da Jamaica, Israel também não poderia reivindicar direitos de Estado costeiro quando se fala da faixa de Gaza visto que esse território não faz parte do Estado de Israel.

Parte II – Mar Territorial e Zona Contígua
Seção 1 – Disposições Gerais – Artigo 2
Regime jurídico do mar territorial, seu espaço sobrejacente, leito e subsolo
“ 1. A soberania do Estado costeiro estende-se além do seu território e das suas águas interiores e, no caso de Estado arquipélago, das suas águas arquipélagas, a uma zona de mar adjacente designada pelo nome de mar territorial.
2. Esta soberania estende-se ao espaço aéreo sobrejacente ao mar territorial, bem como ao leito e ao subsolo deste mar.”

Seção 2 – Limites do Mar Territorial – Artigo 3
Largura do mar territorial
“ Todo Estado tem o direito de fixar a largura do seu mar territorial até um limite que não ultrapasse 12 milhas marítimas, medidas a partir de linhas de base determinadas de conformidade com a presente Convenção.”

Seção 4 – Zona Contígua – Artigo 33
Zona Contígua
“ 1. Numa zona contígua ao seu mar territorial denominada zona contígua, o Estado costeiro pode tomar medidas de fiscalização necessárias a:
  • a) evitar infrações às leis e regulamentos aduaneiros, fiscais, de imigração ou sanitários no seu território ou no seu mar territorial;
  • b) reprimir as infrações às leis e regulamentos no seu território ou no seu mar territorial.
2. A zona contígua não pode estender-se além de 24 milhas marítimas, contadas a partir das linhas de base que servem para medir a largura do mar territorial.”

Parte V – Zona Econômica Exclusiva
Artigo 55
Regime jurídico específico da zona econômica exclusiva
Este artigo define zona econômica exclusiva como uma zona situada além do mar territorial e a este adjacente, sujeita ao regime jurídico específico estabelecido na presente Parte, segundo o qual os direitos e a jurisdição do Estado costeiro e os direitos e liberdades dos demais Estados são regidos pelas disposições pertinentes da presente Convenção.

Artigo 57
Largura da zona econômica exclusiva
Este artigo define a largura da zona econômica exclusiva da seguinte forma: “A zona econômica exclusiva não se estenderá além de 200 milhas marítimas das linhas de base a partir das quais se mede a largura do mar territorial.”

Artigo 58
Direitos e deveres de outros Estados na zona econômica exclusiva
Na zona econômica exclusiva, todos os Estados, quer costeiros quer sem litoral, gozam, nos termos das disposições da presente Convenção, das liberdades de navegação e sobrevôo e de colocação de cabos e dutos submarinos, a que se refere o artigo 87, bem como de outros usos do mar internacionalmente lícitos, relacionados com as referidas liberdades, tais como os ligados à operação de navios, aeronaves, cabos e dutos submarinos e compatíveis com as demais disposições da presente Convenção.”


Parte VII – Alto-Mar
Seção 1 – Disposições Gerais – Artigo 86
Este artigo define Alto-mar como “todas as partes do mar não incluídas na zona econômica exclusiva, no mar territorial ou nas águas interiores de um Estado, nem nas águas arquipelágicas de um Estado arquipélago.”

Artigo 89
“Nenhum Estado pode legitimamente pretender submeter qualquer parte do alto-mar à sua soberania.”

Artigo 110
Direito de Visita
Segundo este artigo, um navio em alto-mar sem imunidade (o que era o caso do navio Turco, uma vez que não era nem navio de guerra e nem navio em serviço oficial não comercial) só poderia ser interceptado para visita e inspeção caso houvesse razões suficientes para se suspeitar que:
  • a) o navio se dedica à pirataria;
  • b) o navio se dedica ao tráfico de escravos;
  • c) o navio é utilizado para efetuar transmissões não autorizadas e o Estado de bandeira do navio de guerra tem jurisdição nos termos do artigo 109 (que versa sobre transmissões não autorizadas a partir do alto-mar)
  • d) o navio não tem nacionalidade; ou
  • e) o navio tem, na realidade, a mesma nacionalidade que o navio de guerra, embora arvore uma bandeira estrangeira ou se recuse a içar a sua bandeira.
Esse mesmo artigo também diz o seguinte: “ 2. Nos casos previstos no parágrafo primeiro, o navio de guerra pode proceder à verificação dos documentos que autorizem o uso da bandeira. Para isso, pode enviar uma embarcação ao navio suspeito, sob o comando de um oficial. Se após a verificação dos documentos, as suspeitas persistem, pode proceder a bordo do navio a um exame ulterior, que deverá ser efetuado com toda a consideração possível.”

Artigo 111
Direito de Perseguição
Este artigo diz que:
“1. A perseguição de um navio estrangeiro pode ser empreendida quando as autoridades competentes do Estado costeiro tiverem motivos fundados para acreditar que o navio infringiu suas leis e regulamentos. A perseguição deve iniciar-se quando o navio estrangeiro ou uma das suas embarcações se encontrar nas águas interiores, nas águas arquipelágicas, no mar territorial ou na zona contígua do Estado perseguidor, e só pode continuar fora do mar territorial ou da zona contígua se a perseguição tiver sido interrompida. (...) Se o navio se encontrar na zona contígua, como definida no artigo 33, a perseguição só pode ser iniciada se tiver havido violação dos direitos para cuja proteção a referida zona foi criada.”

Como se vê, os conceitos de mar territorial, zona contígua, zona de exclusividade econômica e alto-mar são juridicamente dependentes da idéia de soberania do Estado costeiro que, então, exerceria jurisprudência sobre essas áreas. Porém, o mar territorial da faixa de Gaza não existe como entidade jurídica uma vez que o território de Gaza não está legalmente sob a jurisdição de nenhum Estado soberano. Juridicamente, esse pedaço de mar é considerado como uma área fora da jurisdição de qualquer Estado que, para efeitos práticos, funciona como se fosse área de alto-mar.

Dessa forma, mesmo que o navio estivesse a uma distância do litoral da faixa de Gaza que pudesse ser caracterizada como mar territorial (12 milhas marítimas) ou zona contígua (24 milhas marítimas), onde permite-se a perseguição e a inspeção, mesmo que o navio estivesse carregando armamentos, conforme alegam os Israelenses, Israel não teria o direito de interceptar essa embarcação por não poder ser considerado como Estado costeiro com jurisprudência sobre a área em questão. Conclusão: O Mavi Marmara nunca adentrou a zona contígua muito menos o que Israel interpretou ser seu mar territorial, portanto Israel não pode alegar que foi invadido ou que adentraram seu território ilegalmente. Israel violou as regras internacionais quando assumiu soberania de uma área que não lhe pertence legalmente reivindicando os direitos advindos dessa condição. Ao se recusarem a obedecer as ordens das forças Israelenses, os tripulantes do Mavi Marmara não cometeram crime algum que justificasse a escalada da violência por parte de Israel.

Mesmo se assumíssemos que Israel pudesse exercer os direitos de Estado costeiro segundo as definições da Convenção da Jamaica, ainda assim Israel teria violado o direito internacional pois, de acordo com a segunda parte do artigo 110 acima mencionado, a violência empregada não se justificaria nem se o navio estivesse dentro da zona contígua e fosse suspeito de pirataria.

O navio turco estava fundeado a aproximadamente 40 milhas da costa de Gaza, ou seja, completamente fora dos limites de mar territorial e de zona contígua, quando foi forçosamente perseguido e interceptado pelos comandos de operações especiais das forças Israelenses. Como já foi visto a perseguição só pode ser iniciada dentro da zona contígua ou do mar territorial. Conclusão: Caso Israel tivesse direitos de Estado costeiro, Israel teria violado as regras internacionais ao perseguir uma embarcação dentro da zona Econômica Exclusiva e ao abordar essa embarcação de maneira totalmente inapropriada.