sexta-feira, 19 de julho de 2013

Tulherias Bossa Nova
Le 17 Juillet de l’anné 457 dans la mort du évêque Sardinha

Capítulo IV – Na roda de fogo com o escorpião de prata
No céu, a Lua, quase pela metade, parecia não querer testemunhar o que estava prestes a acontecer e puxava o cobertor do lado escuro para se proteger daquela que seria não a mais fria, mas, talvez, a mais longa noite de inverno no Rio. Foi como se o Tempo, decidisse contrariar os versos de Cazuza riscados no chão da cidade. Não passará. Não passarão.

Mas a Lua, emotiva e sensível como toda boa mãe, se encontrava em Escorpião e pedia calma aos céus. Ela sabia que Marte, Mercúrio e Júpiter, reuniam-se sob seus domínios em Câncer, e que, por isso, estariam mais abertos a ouvir suas súplicas. Isso não a preocupava. O problema era Plutão, o planeta da morte e da transformação, que rege tudo aquilo que é oculto, proibido ou tabu; tudo aquilo que não se consegue, ou não se quer ver; tudo aquilo sobre o que não se deseja falar e todos aqueles bestializados e esquecidos pela moral coletiva.

Plutão estava em Capricórnio, signo regido pela força conservadora e repressora de Saturno, e fazia oposição aos desejos da Lua. Saturno estava em Escorpião, signo regido pela força misteriosa de Plutão. Apesar de estar, também, em Escorpião, e portanto, iluminada pelo profundo senso de Justiça desse signo, a lua não conseguiu convencer Plutão a mudar seus planos para aquela noite. Não haveria força no Universo que fosse capaz de impedir que Saturno em Escorpião se sentasse à mesa com Plutão em Capricórnio.

Profundamente irritado pela insistência da Lua em trazer alguma luz para o impasse, Plutão cuidou para que as forças das sombras comandadas por ele e para que as forças das profundezas comandadas por Netuno levantassem nuvens de fumaça para ocultar a Lua e confundir ainda mais as pessoas na Terra.

Uma nova fogueira ardia mais adiante no cruzamento da General San Martin com a Rainha Guilhermina. Dali onde eu estava não se via um veículo na rua. Estava deserta, abandonada. Também não se via uma viva alma. Nem o vento parecia passar por ali recusando-se a semear lágrimas de fogo. Alguns dos postes, que dão o tom amarelado da noite do bairro, também se calaram. Escurecia.

A Lua, com os nervos à flor da pele, começou a ficar muito preocupada e mal podia conter toda sua ansiedade. Sabia que Saturno em Escorpião seria capaz de tudo para manter a sensação de poder e se sentir seguro. E que se tivesse a ajuda de Plutão conseguiria manipular os acontecimentos à seu bel prazer e esconder a verdade. Logo que soube que o encontro secreto entre Plutão e Saturno aconteceria, e temendo por seus filhos na Terra, a Lua, mesmo sabendo que Mercúrio ainda estava meio embriagado de sono, acordou-o no meio da noite e pediu que levasse a Terra uma mensagem.

Mercúrio, retrógrado e ainda meio sonolento, fez corpo mole e disse que não queria ir. Mas a Lua estava em Escorpião e não havia nada nesse mundo que a impedisse de conseguir que sua mensagem chegasse a Terra. Conseguiu convencer Mercúrio de que era muito importante que ele levasse aquela mensagem e prometeu-lhe uma Lua nova em Gêmeos e Virgem, signos regidos por ele, ainda naquele ano.

Mercúrio roubou a chama de uma das fogueiras e foi chamar o Vento nos quatro cantos do mundo para espalhar as nuvens de fumaça que Plutão e Netuno tinham invocado para calar a Lua. As nuvens se dissiparam e a Lua ressurgiu anunciando à todos na Terra para ter cuidado porque naquela noite nada seria o que parece ser.

E antes que Plutão pudesse abrir os portões do mundo dos mortos e cavalgar pela noite com seus corcéis negros e foscos, houve um longo minuto de silêncio.

Estava de costas para a encruzilhada quando tudo aconteceu. Um barulho surdo, vindo da minha esquerda, onde os policiais do choque se enfileiravam, quebrou o silêncio que mais soava como um mau presságio. Alguma coisa fora atirada contra eles. Quando me virei, um outro objeto, em chamas, cruzava o espaço entre os dois grupos em direção aos policiais. Não demorou muito para as bombas começarem a pipocar e um diálogo nada amistoso tomar forma. Os manifestantes respondiam com pedras portuguesas ou o que estivesse à mão. Rajadas de bala de borracha, que envergonham o choro da seringueira, elevavam o tom da discussão.

Os policiais continuaram a lançar bombas em direção às pessoas que estavam na Aristides Espíndola obrigando-as a dispersar em direção à Ataulfo de Paiva. As pessoas que, como eu, se encontravam na General San Martin tentavam se aproximar do cruzamento para ver o que acontecia e documentar da forma que fosse possível, mas também eram eventualmente reprimidas e voltavam a se afastar. Ficamos nesse vai e vem por algum tempo até o momento em que se ouviu aquele som característico do lançamento da primeira bomba de gás da noite. As bombas continuavam a explodir mas o choque não saía do seu quadrado.

Num determinado momento, um grupo de policiais corria em direção ao QG do choque quando foram interceptados por um homem já de meia idade e de aparência bem distinta que caminhava na direção contrária com uma bermuda azul clara, camiseta branca e um par de havaianas. O homem parecia ser um morador do bairro e começou a reclamar com os policiais. Quando cheguei perto, o grupo se dispersou. Cada um seguiu seu caminho, mas o homem se afastava gritando: “O Cabral é empregado! Eles sabem que estão protegendo bandido!”.

As bombas de gás haviam sido bem eficientes em afastar as pessoas da esquina da Aristides e o grupo se concentrava no cruzamento da Rita Ludolf quando viu-se o Choque romper a linha de contenção e avançar em direção à Ataulfo de Paiva para onde haviam dispersado os manifestantes. Na encruzilhada, o grupo se dividiu. Uma parte seguiu em direção à Ataulfo e outra parte caminhava, agora, na nossa direção. Houve pânico. As pessoas começaram a correr em todas as direções. A coisa estava ficando preta.

O único lugar da rua onde parecia haver algum sinal de vida era no Black Bar, um lounge estiloso no último quarteirão da General, onde algumas pessoas muito bem vestidas tomavam drinks e socializavam. Os garçons apressavam-se em retirar as mesas colocadas na calçada temendo confusão e destruição de patrimônio. Os clientes estavam visivelmente tensos na varanda.

Eu me posicionei em frente ao bar. Caso alguma coisa acontecesse, não estaria sozinho. Mas para alívio geral, o grupo do choque que caminhava em nossa direção dobrou à direita quando chegou na esquina da rua Rita Ludolf e também se dirigiu em direção à Ataulfo. Eles pareciam se movimentar no sentido de encurralar os manifestantes por lá exatamente como fizeram na Senador Correa com os manifestantes presentes ao protesto do dia 11 de Julho em Laranjeiras.

Foi quando vi um rapaz bem branquinho, que não devia ter nem vinte anos e que também havia procurado proteção na frente do bar, ser abordado por dois policiais enormes que tentavam fazer com que o menino lhes entregasse a câmera dele. Não pude ignorar o que acontecia e fiquei observando a cena. Eles eram altos, largos e pesados o que tornava ainda mais evidente a fragilidade do menino, que apesar de estar visivelmente intimidado, tentava se defender como podia mantendo sua câmera o mais afastada possível do alcance dos policiais.

Os policiais valiam-se de uma linguagem corporal desnecessariamente agressiva para abordá-lo. Perguntaram se o menino era jornalista tentando sugerir que ele não poderia estar ali tirando fotos caso não fosse. O menino, por medo, ou talvez, por antecipar a motivação por trás de pergunta tão ilegitimamente formulada, respondeu que era. Mas ao perceber que os policiais não se dariam por satisfeitos, começou a argumentar – como deveria ter feito desde o início – que não precisava ser jornalista para poder tirar fotos do protesto. O que confirmou a suspeita dos policiais de que sua primeira afirmação faltava com a verdade. Eles aumentavam a pressão psicológica e o jogo de nervos em cima do menino numa demonstração inaceitável de covardia e abuso de autoridade.

– Afinal de contas, você é ou não é jornalista?, perguntavam.

O menino, muito nervoso, se enrolava a cada resposta e mal tinha tempo para pensar no que dizer pois os policiais pareciam não estar ali para ouvir e faziam uma pergunta atrás da outra para deixar seu interlocutor atordoado. E apesar de tudo acontecer ali na cara das pessoas bebendo no bar, ninguém dizia uma palavra em defesa do menino.

Quando me dei conta estava no meio do buraco negro. Disse ao policial que abordavam o rapaz de maneira inadequada, que as perguntas que faziam à ele eram improcedentes, que ele tinha o direito de tirar fotos daquilo que quisesse e que ele não precisaria ser um jornalista para fazê-lo. Um dos policiais, pela primeira vez pareceu perceber que havia pessoas ali testemunhando tudo aquilo e se dirigiu em minha direção com a mesma propriedade que se dirigia ao rapaz mas visivelmente irritado por eu ter quebrado o silêncio que lhe permitia acreditar que não tivesse que ser forçado a prestar contas sobre seu comportamento.

Como eu também já estava muito indignado com toda aquela cena fui facilmente envolvido pela brutalidade e pela ignorância dele e comecei a elevar o tom da minha voz também. Começou um bate boca no meio da rua. Mas depois de alguns minutos percebi que tinha caído no jogo dele. Senti uma presença como que a me aconselhar a baixar o tom da voz, a voltar para o centro e não alimentar aquela situação. Foi o que fiz. Baixei a voz e dizia à ele:

– A gente não precisa conversar dessa maneira. Você não deve se dirigir dessa forma aos cidadãos.
– Eu também sou um cidadão! Você sabia disso?!?!, esbravejava ele enquanto se aproximava de mim como que me obrigando a recuar fisicamente para mostrar quem estava no controle ali.
Eu recuava sem problema enquanto respondia:
– Isso. Nós dois somos cidadãos e não precisamos falar dessa maneira para resolver nossos problemas.
– Como é que você quer que eu fale, hein?, gritava.
E mantendo meu tom de voz tranquilo, respondi:
– Assim…

O PM perdeu completamente a linha, foi como se o poder dele tivesse desaparecido no momento em que eu parei de jogar o jogo dele. Quase sem saber começava a trazer o escorpião para o círculo de fogo. Enlouquecido, me mandou tomar no mesmo lugar que os manifestantes insistem em matar a sede de Sérgio Cabral. E xingou minha mãe.

A essa altura eu já não conseguia mais ver o menino. Ele tinha sumido. Fiquei feliz por um segundo. Ao notar que seu companheiro estava perdendo a linha, o outro policial que já não importunava mais ninguém, se aproximou. Começou a perguntar quem eu era e o que estava fazendo ali. Pedia insistentemente a minha documentação dizendo:

– Me dá sua identidade aí, vai! Vamos ver se você é uma pessoa de bem!

A minha primeira reação foi de tentar resistir ao pedido dele, afinal de contas não havia feito nada de errado para justificar aquele tipo de abordagem. Mas depois lembrei de um detalhe, e deixei ele acreditar que estava no comando. O círculo de fogo se fechava. Não demoraria muito para que o escorpião provasse um pouco de seu próprio veneno.

Nesse momento, enquanto abria a carteira para pegar minha identidade, apareceu o homem que viria a conhecer mais tarde pelo nome de Pedro. Pedro era um pouco mais baixo que eu. Tinha uma aparência muito tranquila e se colocou ao meu lado como uma pedra de Xangô, deus iorubá da Justiça, e, coincidentemente, orixá também associado ao elemento fogo. O PM descontrolado havia se afastado. Tirei a minha identidade da capa plástica que a protegia e entreguei o documento ao policial. Pedro observava em silêncio. Nessa hora, o policial tirou um taser do bolso e, para usá-lo como uma lanterna a fim de poder ler o que dizia o documento, promoveu um pequena descarga elétrica no equipamento. Foi possível ouvir o som da descarga. Pedro, que até então se mantinha em silêncio, reagiu assustado ao terrorismo psicológico:
– Choque?!, perguntou.

O policial nem olhou para ele e continuou lendo a minha carteira. Olhou de um lado. Olhou do outro. Permanecia em silêncio. Eu sabia exatamente o que estava acontecendo. E, aos poucos, o alívio que já sentia, ia se transformando em uma forma de revolta e indignação. Desligou a lanterna e estendeu a mão me devolvendo o documento:
– Muito obrigado, pode ir.
Virou as costas e desapareceu. Eu caminhei em direção ao Black Bar onde um homem me perguntou o que havia acontecido. Enquanto contava a estória, uma mulher que estava sentada na varanda interrompeu minha narrativa quase que murmurando, ou como se estivesse pensando alto:
– Ele fez tudo aquilo para se defender…
– Como assim, senhora?, perguntei sem entender do quê eles estariam se defendendo.
Uma outra mulher, de cabelos longos e negros, bem mais jovem e muito bonita respondeu:
– Eles estavam aqui bebendo quando o rapazinho apareceu. Acho que eles pensaram que o rapaz teria fotografado eles bebendo e começaram a importuná-lo.

A Lua mantinha sua palavra: Nada será o que parece ser.

Deixei o Black Bar e caminhei em direção a Pedro, foi quando ele se apresentou e disse ser membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB. Trocamos algumas impressões sobre tudo o que estava acontecendo por alguns minutos; nos despedimos e seguimos para a Ataulfo de Paiva por calçadas opostas. No meio do caminho me toquei que, durante nossa conversa, não havia me apresentado. Atravessei a rua correndo, estendi-lhe a mão e me apresentei. Muito prazer!

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Tulherias Bossa Nova
Le 17 Juillet de l’anné 457 dans la mort du évêque Sardinha

Capítulo III – Helenas na encruzilhada
Logo que cheguei no cruzamento da Rainha Guilhermina com a General San Martin um rapaz magro, de pele bem branca e músculos definidos ajoelhava-se sobre o asfalto sem camisa e, como se estivesse em transe, incorporava Cazuza riscando os versos de O tempo não para com giz branco: transformam o país inteiro num puteiro porque assim se ganha mais dinheiro.

Deu meia-noite. A lua apareceu em Escorpião. Lá na encruzilhada, agora eram os meninos que trancavam a rua onde os versos se multiplicavam pelo asfalto e brotavam livremente do chão como minas de prata. O vendedor passava vendendo cerveja. As pessoas pisavam nas palavras que explodiam em voz. Em vocação. Evocação. Presença. O grupo foi crescendo. Mais pessoas, vindas da praia, iam se achegando. Os ninjas anarquistas foram recebidos calorosamente. O vendedor passava vendendo cerveja. Para completar a cena com chave de ouro, avistei, do outro lado da rua, um menino todo de preto que se enrolava em um pedaço de cetim vermelho como se usasse uma capa. Cruzei os dedos. Palmas para o chão em reverência. Laroê, Exu!

As pessoas decidiram deliberar em grupo, e o mais democraticamente possível, sobre qual deveria ser o próximo passo dado. Sentaram-se todos no chão e começaram o MicSynching nos moldes do que foi apresentado ao mundo pelos manifestantes dos movimentos Occupy Wall street de 15 de Outubro de 2012. A menina que orava explicava que havia três grupos: um na Ataulfo, um na praia, de onde muitos dos que ali estavam tinham vindo — inclusive eu — e a nossa falange. O grupo decidiu seguir em direção à Ataulfo de Paiva.

No caminho lia-se pelo chão: Leblon, seu asfalto novo são os professores que não temos. Outro verso dizia: vandalismo é destruir escola para estacionamento do Maracanã. Não sabia, mas tínhamos chegado em frente ao prédio de Pezão, o vice-governador. Os ogãs puxavam um ponto com muito mais axé e a poesia desencantou. A gira virava a roda da vida. Roda, roda, roda e avisa. Depois de vários minutos de palavras pedindo a cabeça do Pé, seguimos em direção da Ataulfo de Paiva. Os manifestantes chamavam as pessoas que jantavam no restaurante Tailandês mais caro do mundo para se juntarem à eles nas ruas chegando, às vezes, até a assustá-las de tão distraídas que estavam do outro lado do Rio que separa realidades tão distantes, tão dissonantes.

Ao chegarmos à Ataulfo, dobramos à direita e caminhamos em direção a Ipanema apesar da oposição de algumas pessoas que argumentavam que isso seria um erro já que a rua se encontrava bloqueada naquela direção pelas obras do metrô. A uma quadra do primeiro canteiro de obras, ali nas cercanias da Praça Antero de Quental, o grupo decidiu retornar. Voltávamos a nos dirigir ao Baixo Leblon, onde tudo havia começado, e caminhávamos agora contra o pouco tráfego que era liberado para a Ataulfo. Um rapaz, comendo seu hamburguer, se esforçava para cruzar a manifestação que apareceu no meio do caminho entre sua casa e a academia equilibrando o sanduíche entre os dedos engordurados.

Sempre que chegávamos a um cruzamento uns meninos se apressavam em sentar-se no chão para trancar as ruas. Outros riscavam pontos no asfalto evocando os mensageiros da manifestação. Batiam o pé, com pressa, com fé; e batiam cabeça, em prece, de pé; E na palma da mão, cantavam para subir a rampa de suas vidas.

Estávamos de volta ao Baixo ainda em alto astral. Algumas lojas desenrolavam seus portões de ferro com medo do pior. Viramos à esquerda na Aristides. Ao contrário do que aconteceu em Laranjeiras na semana passada, poucas pessoas se aventuravam a aparecer nas janelas. Não vi ninguém piscando luzes ou batendo panelas em apoio aos manifestantes. Uma vez ou outra, a duras penas, podia-se mirar o vulto das helenas nas janelas dos prédios. Ocultas e serenas, quase abandonadas, se recolhem atrás de camadas de insulfilm ou dentro da escuridão do apartamento. Entretanto, dois vizinhos de andares mais próximos ao chão de um prédio do lado direito da rua conversavam, abertamente, debruçados no parapeito de suas janelas.

Ainda na calçada da esquerda, passei por um casal em pé ao lado de duas caixas de papelão cheias de entulho. As caixas me chamaram a atenção, mas segui meu caminho. Estava de volta às grades de contenção. Eu e o menino que havia se fantasiado de Chávez. O que ainda é um delicioso mistério para mim. O resto do grupo tinha ficado para trás. Estava tudo tão tranquilo que deu tempo para eu contar quantos soldados estavam ali em pé na minha frente. Eram trinta e quatro.

Alguém trouxe as caixas para o meio da encruzilhada e colocou fogo nelas. Urano estava em Áries afinal. Enquanto as caixas queimavam, vários fotógrafos se aproximaram para capturar o momento. Fez-se uma roda em torno do fogo e, logo, tudo aquilo que subia como vagalume nevava de volta à terra como cinza anunciando que o vento estava para mudar e que não seria muito tempo até a entrada triunfante do Senhor da guerra e de seus cavalos de fogo. Os homens de cinza apenas observavam de dentro do curral que construíram para proteger o bezerro dourado que paga o leitinho das crianças. Eles não tem gosto ou vontade, nem defeito nem qualidade, tem medo apenas. Mas no fim da noite aos pedaços, quase sempre voltam pros braços, de suas pequenas, Helenas.

Tulherias Bossa Nova
Le 17 Juillet de l’anné 457 dans la mort du évêque Sardinha

Capítulo II – Chá das cinco
Quando chegamos à Praça Santos Dumont o trânsito, que já estava lento, engasgou de vez. Decidi deixar o ônibus e andar até o Baixo Leblon onde mora nosso estimado governador. A Visconde de Albuquerque estava engarrafada nos dois sentidos do canal. Atravessei a Praça Sibelius, onde um sinal luminoso anunciava a interdição da General San Martin devido à manifestação; tirei algumas fotos; e segui, apressado, pela pista da esquerda contra o fluxo do trânsito que vinha do Leblon. As famosas figueiras da rua me protegiam da luz forte dos faróis que se moviam em minha direção bem mais vagarosamente do que eu me movia na direção delas. Já era possível ouvir o som dissonante que nos embalaria noite adentro: o dos helicópteros sobrevoando a área em ebulição.

Chegava à Ataulfo de Paiva para lá de fashionably late. Encontrei-a estranhamente vazia não só por conta das obras do metrô mas também pelo controle de fluxo de tráfego que alguns homens da prefeitura faziam no local por conta da manifestação. Decidi entrar na primeira rua à direita, aquela que acaba na Praça Atahualpa, pois ali já era possível ver um grupo grande se movimentando na General San Martin.

Havia um grupo do Choque estacionado onde a Praça Atahualpa encontra a Delfim Moreira. A multidão passou por eles cantando, gritando, levantando cartazes, desfraldando bandeiras e, como sempre, documentando tudo. Mas não houve provocação de nenhuma das partes. A multidão passou e voltou a se dirigir à rua do Governador.

Pelo que entendi, até aquele momento tudo transcorria de forma bem pacífica, os grupos estavam simplesmente dando a volta nos quarteirões vizinhos ao de Sérgio Cabral pois o acesso ao trecho da Rua Aristides Espíndola, onde mora o governador, havia sido bloqueado pelos policiais do Choque tanto na esquina da praia quanto na esquina da San Martin. Uns trinta e poucos policiais alinhavam-se em cada extremidade daquele trecho da rua para impedir a passagem das pessoas e permitir, apenas, o trânsito de moradores.

Segui com o grupo de volta à rua do governador que fica um pouco depois do posto 12 onde tive uma primeira impressão de que as estrelas poderiam ter-se enganado. Fiquei olhando tudo de longe. Notei alguns rostos familiares de manifestações passadas. A faixa com os dizeres: A Polícia que reprime na Avenida é a mesma que mata na favela, presente na manifestação do dia 11 de Julho em Laranjeiras, também estava lá. A menina com o fantoche de papel machê de Sérgio Cabral e o rapaz que fora alvejado na cara com uma dose pelourinhesca de spray de pimenta em Laranjeiras também estavam presentes. Os estudantes de medicina e os voluntários da OAB. Idem.

Caminhei até onde as grades de contenção estabeleciam os limites da manifestação. Lá, também havia uma estação de bicicletas, dessas do Itaú, quase vazia, o que permitiu que muitos fotógrafos subissem na barra laranja horizontal que serve de estacionamento para as magrelas a fim de conseguir ângulos mais interessantes para suas fotos. A guarda real se mantinha, britanicamente, imóvel por trás das grades.

Mais tarde fiquei sabendo que havia três grandes grupos de manifestantes na área, mas ali onde estava, o perfil das pessoas parecia ter mais cubinhos de açúcar do que o perfil do grupo que se reunira dias atrás em frente ao Copacabana Palace. Meninos de skate e lambreta para lá e para cá, gente bem vestida parecendo ter saído do trabalho ou de uma happy hour, curiosos, estudantes, senhoras e senhores. Idades, classes, cores. Tudo muito misturado, como sempre. As pessoas numa tentativa de aprofundar a compreensão de seu entorno, debatiam as razões e os porquês de tudo aquilo e, não raro, passavam quase uma sensação de constrangimento ao justificarem sua presença ali e deixar bem claro que não devia ser confundida com qualquer traço de ausência de civilidade por parte delas. Pareciam muito preocupadas em explicar todos os motivos que as impediriam de dar àquilo um apoio mais tácito. Conflito compreensível em uma sociedade que aprende diariamente a naturalizar a violência diária imposta aos mais vulneráveis entre nós.

Há algumas semanas atrás estava em São Paulo num ônibus que descia a Consolação em direção a Praça da República quando entrou um homem que fedia tanto que sua presença não podia ser ignorada. O cheiro era repugnante. Um grupo grande saiu do ônibus logo que ele entrou. O trocador abriu as janelas perto dele e mantinha a cabeça para fora a fim de conseguir respirar. Pensei que os loucos e miseráveis, assim como os miseráveis loucos, talvez fedam dessa maneira porque nós insistimos em desenvolver estratégias elaboradas para nos convercermos de que eles não existem, de que não os vemos. E na natureza, quando um sentido falha, um outro compensa a falta.

Foi nessa hora, que, ao meu lado, surgiu um homem de barba grisalha e aparência soturna carregando uma mochila marrom clara nas costas com seu celular na mão. Ele apontava sua câmera para os policias e narrava o texto para as imagens que produzia dizendo coisas do tipo: “Aí estão pais de família, trabalhadores, cansados de ter que enfrentar esses vagabundos quase que diariamente…”.

Apesar de não discordar da abordagem dele em documentar humanidade em certos policiais, mesmo porque foi coisa documentável nas manifestações das quais participei como observador até agora, confesso que a situação me causou um certo disconforto. O homem terminou seu trabalho e partiu. Pensei em fotografá-lo, mas desisti. Saí de perto das grades de contenção e observei ele por um tempo. Ele seguiu em direção à Praça Atahualpa e sumiu na distância por conta dos meus graus de miopia.

Quando voltei para onde estava, não tardou para que avistasse o grupo de ninjas anarquistas. Não. Esses não são os meninos do Mídia Ninja que fizeram um trabalho excelente de cobertura. É um grupo que carregava cartazes e placas com o símbolo da anarquia. Estavam, em sua grande maioria, vestidos todos de preto. Uns encapuzados. Outros, não. Ás vezes, também enrolavam camisetas ao redor da cabeça deixando apenas os olhos à descoberto. Dress-code que vem ganhando muitos adeptos a cada manifestação. Não se sabe, ao certo, se fazem isso para se protegerem dos gases e temperos lançados contra eles ou se para dificultar sua identificação. Seja como for, é bom que se diga também que a estratégia que tem por objetivo dificultar a identificação do indivíduo também é muito frequentemente usada pelos membros do Choque.

Um rapaz ficava de skate para lá e para cá gritando: Rainha Guilhermina! Rainha Guilhermina! Ele tentava fazer com que as pessoas reunidas em frente à rua bloqueada saíssem dali e fossem se juntar aos outros grupos que circulavam pelo bairro. Resolvi aceitar o convite. Deixei o Rei-Sol se pôr e fui fumar um charuto com a Rainha holandesa.

Tulherias Bossa Nova
Le 17 Juillet de l’anné 457 dans la mort du évêque Sardinha

Capítulo I – O céu não está para Peixes
Saí de casa tarde. Já era quase oito da noite. O ato em frente ao apartamento do Governador, Sérgio Cabral, no Leblon, havia sido marcado para as cinco e meia da tarde. Absurda falta de planejamento. Afinal de contas, era bem sabido que Mercúrio, o planeta que rege transportes e comunicação, está retrógrado até o dia 20 desse mês.

Em astrologia, quando um planeta “anda para trás”, ele enfraquece, e não canaliza a sua energia de forma plena sobre as áreas de nossas vidas por ele regidas. Isso significa que a possibilidade de atrasos por conta de problemas no trânsito ou por conta de problemas mecânicos seriam bem prováveis. Mesmo assim, desafiei as estrelas e optei por ficar em casa até um pouco mais tarde escrevendo e acompanhando os acontecimentos pela rede.

Lá pelas sete e pouco, resolvi ir pra rua. Me armei com as armas de Jorge: uma câmera digital cuja bateria sempre me deixa na mão; o celular; uma caneta; e o bloquinho de anotações que guarda os registros da noite em frente ao Copacabana Palace, mas que ainda contava com folhas em branco suficientes para mais uma noite que tinha tudo para bombar. Fiz o check list duas vezes porque Mercúrio retrógrado também faz você esquecer as coisas, e parti para enfrentar o dragão que solta pimenta pelo nariz.

A dúvida era se seguiria pelo Jardim Botânico ou se tentaria chegar ao Leblon por Ipanema. Sabia que devido à Mercúrio, ao adiantado da hora e à manifestação, o trânsito nas proximidades estaria caótico. Deixei o acaso decidir e peguei o primeiro ônibus que me conduzisse a meu destino. Qual não foi minha surpresa quando, de cara, apareceu o 583. Quem conhece a peça sabe como costuma demorar! E segui pelo Jardim Botânico.

Era um ônibus de ar condicionado. Sempre me pergunto por que parece que os ônibus de ar condicionado circulam mais quando está frio ou quando está chovendo. De onde me sentei dava para ver a tela de televisão que entretem a viagem dos passageiros com um sarapatel de notícias, irrelevâncias sobre celebridades, programação cultural de teatro, vídeos de bichinhos fofos e conselhos astrológicos. A viagem seguia lenta já na entrada da São Clemente e eu me distraía entre a tela de dentro e a tela de fora.

Quando passávamos em frente ao Santo Inácio apareceu pela primeira vez a tela azul das dicas astrológicas onde se lia: Urano retoma movimento direto em Áries… Estava distraído. Não dei muita atenção e nem lembro a que signo se referia. O trânsito continuava lento. A cidade passava na janela e parecia seguir sua rotina normal de quarta feira.

Chegávamos no Largo dos Leões, também signo de fogo, quando olhei para dentro de novo e me deparei com a mesma tela de astrologia dizendo: Urano retoma movimento direto em Áries… Foi aí que a coisa me chamou a atenção. Apesar de distraído pela viagem, sabia que não havia passado tempo suficiente para que a programação tivesse corrido por todos os signos do zodíaco e estivesse de volta àquele signo. Mercúrio mostrava, assim como o gigante, que não estava adormecido. Alguma coisa não estava funcionando direito no sistema que alimenta o conteúdo astrológico e ele simplesmente ficava repetindo aquela mesma tela dizendo Urano retoma movimento direto em áries…

Para os não iniciados, Urano é o planeta revolucionário, aquele que quebra as regras estabelecidas pelo velho Saturno. Se relaciona com ideais de liberdade, independência e inovação. Rege os aquarianos e é responsável pela famosa intuição aquariana. Áries é o primeiro signo do zodíaco, o mais individualista, o mais impulsivo, o mais agressivo. Vem depois do sensível e universalista signo de Peixes e é regido por Marte, o planeta vermelho e Deus da guerra para os romanos. Para complicar a situação, Mercúrio está retrógrado dificultando a comunicação. O céu mandava sua mensagem.